São raras as ocasiões em que uma frase dita no futebol num determinado contexto não quer dizer aquilo e mais alguma coisa. Há exceções, como aconteceu na terça-feira à noite em Famalicão – quando Silas assumiu não só a sua saída mas também a chegada do antigo companheiro e amigo Rúben Amorim, o antigo treinador do Sporting, até pela forma como a pergunta foi feita, achava que já tinha existido um anúncio público que acabaria por chegar apenas na manhã desta quinta-feira. Ainda assim, muito do que se tenta passar cá para fora chega mais em forma de entrelinhas do que na mensagem ipsis verbis. E António Salvador foi um bom exemplo disso.
“As ocorrências dos últimos dias devem motivar uma reflexão desportiva e ética. Ficámos surpreendido pelas movimentações de um clube concorrente, precisamente aquele que nos persegue na tabela, que à luz dos regulamentos e contratos conseguiu assegurar o nosso treinador. Percebo quem diz que pode desvirtuar as competições, percebo quem lembra o exemplo da Liga espanhola, onde isto não seria possível”, disse.
O líder do Sp. Braga explicou de forma detalhada como decorrer todo o processo da chegada de Rúben Amorim ao Sporting, contando que o primeiro contacto foi feito após a derrota dos minhotos em Glasgow frente ao Rangers (ou seja, no mesmo dia em que os leões se colocaram numa boa posição para passar, após o triunfo em Alvalade com o Basaksehir por 3-1), que a hipótese de haver negociação com dois jogadores além do passe de Palhinha foi colocada [n.d.r. jogadores esses que seriam Ivanildo Fernandes e Gelson Dala], que o próprio Rúben Amorim sabia que ou era feito o pagamento dos dez milhões ou não saía. O que ficou nas entrelinhas? 1) o mérito de ter resistido às conversações para tornar um técnico com 13 jogos na equipa principal o terceiro mais caro de sempre; 2) a colocação do Sporting como adversário, ou neste caso concorrente, direto; 3) a capacidade de formar treinadores que depois acabam de forma inevitável saltar para um dos ditos “grandes”.
Era também neste contexto que Frederico Varandas, presidente do Sporting, iria apresentar aquele que seria o sexto técnico no lapso de um ano e meio (fará de forma exata no próximo domingo) depois de José Peseiro, Tiago Fernandes (que fez apenas três jogos), Marcel Keizer, Leonel Pontes e Silas. Mais do que isso, era neste contexto que iria falar num jogo de “ser e parecer” muito criticado em Alvalade. Alguns exemplos: houve necessidades de ordem orçamental que levaram à venda de Bas Dost abaixo do preço de mercado mas existe agora um enorme investimento num treinador que passa a ser o terceiro mais caro de sempre, apenas superado pela ida de André Villas-Boas do FC Porto para o Chelsea e de Brendan Rodgers do Celtic para o Leicester; houve uma época catalogada como a melhor desde 2002 em 2018/19 e agora um retrocesso evidente para uma das piores temporadas de sempre; mais evidente ainda, houve uma aposta clara na mensagem de dar estabilidade ao setor do futebol durante a campanha e Amorim é o sexto timoneiro em menos de metade do mandato.
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Era isso que se esperava, foi isso que acabou por não acontecer com aviso prévio: Frederico Varandas iria apenas fazer uma declaração de apresentação e não responderia a perguntas (ao contrário do que aconteceria com Rúben Amorim, que fez apenas uma declaração de circunstância para ficar à espera das perguntas). Mas numa única declaração enviou vários recados e “farpas” – ou não existissem aquelas célebres mensagens nas entrelinhas.
“É com grande prazer que estou a aqui a apresentar um novo treinador. Não é apenas um treinador, é acima de tudo o homem escolhido para liderar este projeto desportivo. É o treinador do nosso projeto. E agora queria aqui esclarecer algumas coisas que têm criado muito ruído…”, começou por referir.
“Esta contratação não implica um all in financeiro, nunca vamos fazer isso. Isso fez-se há mais de dois anos e passados três meses não se pagava impostos e ia-se à conta reserva para pagar salários”, apontou, numa clara alusão à estratégia financeira e desportiva do antecessor, Bruno de Carvalho. “Há uma mudança estratégica, um novo paradigma no futebol. O orçamento foi decidido há meses, o orçamento não vai aumentar nem um cêntimo, o que altera é a alocação das verbas desse mesmo orçamento. Podemos discutir se é muito ou se é pouco, para nós o Rúben Amorim vai potenciar e criar valor. Sabemos, acreditamos e confiamos que é o treinador certo porque um treinador certo faz valorizar o plantel em 30% ou 40%, um jogador Sub-23 pode subir e ser vendido por 30 milhões. À vezes o que é barato sai caro mas o aparentemente caro pode sair barato. O meu critério é a competência”, destacou, neste caso a propósito da cláusula de dez milhões e da qualidade do plantel.
“O mercado de treinadores não é diferente do mercado de jogadores. O futebol português não consegue segurar um Bruno Fernandes e um Bernardo Silva na sua plenitude como também não consegue atrair figuras de renome internacional ou grandes treinadores portugueses que não querem vir e não é por questões financeiras. Não temos dúvidas que daqui a uns anos o Rúben será demasiado grande para o futebol português. Também sabemos que se fosse apresentado daqui a três meses noutro clube neste país era uma grande jogada, aqui é um grande risco. Conheço bem o clube, durmo bem com isso. É a nossa escolha, o treinador do nosso projeto”, prosseguiu, desta feita numa alusão à impossibilidade de chegar a nomes como Leonardo Jardim (que agora não foi tentado, apesar de estar livre) e numa “farpa” ao rival Benfica, que teria também o técnico referenciado.
“É um treinador que tem uma visão igual à nossa do futebol. Apoiado na formação, sem medo de formar, lançar e potenciar jogadores. Não vem só pelos resultados que teve como treinador do Sp. Braga, temos um conhecimento mais profundo como treinador e como homem. É uma opção que faz também a mudança de paradigma, fácil de justificar, e não tenho problemas nenhuns em investir no treinador certo. É um grande treinador mas não é um milagreiro. Tem muita ambição, muito querer, conhece a realidade do futebol português, o que é trabalhar num clube grande, com exigência e ambições como o Sporting. Estamos completamente alinhados e hoje arranca a época 2020/21″, destacou em seguida, nesta ótica num recado sobretudo interno, quase que deixando um aviso aos opositores que não haverá tempo para dissecar os erros feitos esta temporada.
“Por fim, queria deixar uma palavra especial e um agradecimento a Jorge Silas e à sua equipa técnica, com quem houve um relação 100% transparente, 100% leal e que teve sempre grande dignidade”, concluiu, no intuito não só de mostrar uma saída a bem com o anterior técnico mas também de contornar o lapso temporário tornado hoje público por António Salvador, quando contou que a primeira abordagem do Sporting por Rúben Amorim foi no dia seguinte ao triunfo dos leões em casa com os turcos do Basaksehir (apesar de, sabe o Observador, a primeira vez que foi comunicado a Silas contactos com outros treinadores tenha sido no dia seguinte à eliminação da Liga Europa após prolongamento no encontro da segunda mão realizado em Istambul).