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Em Itália, os hospitais estão à beira do colapso — e os médicos têm de escolher quem podem tratar

Este artigo tem mais de 4 anos

Médicos italianos relatam caos nos hospitais da região norte do país europeu mais afetado pelo surto de coronavírus. Face à escassez de material e de médicos, há doentes que não estão a ser tratados.

Quase todos os hospitais da região norte de Itália estão exclusivamente dedicados à resposta ao surto de coronavírus
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Quase todos os hospitais da região norte de Itália estão exclusivamente dedicados à resposta ao surto de coronavírus

Getty Images

Quase todos os hospitais da região norte de Itália estão exclusivamente dedicados à resposta ao surto de coronavírus

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Com mais de dez mil casos confirmados de infeção pelo coronavírus e pelo menos 631 mortos, Itália entrou esta semana numa nova fase de combate ao surto. O país europeu mais afetado pelo vírus — e o segundo a nível global, depois da China — está desde esta terça-feira em isolamento total, o último esforço do governo de Giuseppe Conte para tentar conter um surto que está a deixar os hospitais italianos à beira do colapso. No norte do país, região mais afetada, os médicos estão mesmo a ser forçados a escolher entre quem tratar e quem deixar morrer.

“Foi aberto um quarto com vinte camas dentro do serviço de emergência. É aqui que a triagem, ou a escolha, é feita. É decidido pela idade e pelas condições de saúde. Como em todas as situações de guerra. Não sou eu que digo, são os manuais que nós estudámos”, disse numa entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera o médico Christian Salaroli, anestesista num hospital de Bérgamo — na região da Lombardia, onde até esta terça-feira já se tinham registado 5.791 casos de infeção e 468 mortes.

Na entrevista, que nesta terça-feira se tornou num dos artigos mais partilhados na internet em Itália, aquele médico pinta um cenário negro que mostra o caos em que estão, neste momento, os hospitais do norte do país, sem capacidade para tratar todos os doentes com coronavírus — e muito menos os doentes com outros problemas de saúde. “O sistema não é capaz de lidar com o ordinário e com o extraordinário ao mesmo tempo”, admitiu Christian Salaroli. “Normalmente, uma chamada para um ataque cardíaco é processada em minutos. Agora, pode acontecer uma espera de uma hora ou mais.”

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No domingo, o responsável do governo regional de Lombardia para as questões de saúde pública, Giulio Gallera, anunciou um plano de reorganização da rede hospitalar da região a propósito do surto de coronavírus. Numa altura em que o número de infetados naquela região, onde vivem mais de nove milhões de pessoas, já superava os quatro mil, Gallera explicou que a região identificou 18 estruturas (hospitais e outras unidades de saúde) para servirem de rede destinada a dar resposta a emergências não relacionadas com o coronavírus — como acidentes graves, ataques cardíacos, AVC, etc. O objetivo é libertar todos os outros hospitais e unidades de saúde, para se dedicarem exclusivamente ao coronavírus.

Pela sala do hospital de Bérgamo onde é feita a triagem dos doentes infetados com o coronavírus passa todas as manhãs um médico especialista em reanimação, cuja “opinião é muito importante“, esclareceu Salaroli na mesma entrevista. É que, continua o médico, “além da idade e do quadro geral de saúde, o terceiro elemento [para determinar se o doente é ou não tratado] é a capacidade do paciente de recuperar de uma operação de cuidado intensivo”.

Todos os doentes com Covid-19, a infeção provocada pelo coronavírus, que chegam ao hospital de Bérgamo passam por aquela sala e são ventilados com recurso a equipamento de ventilação não-invasiva. Passado “um par de dias”, os médicos são “obrigados” a escolher. “A ventilação não-invasiva é apenas uma fase passageira. Como, infelizmente, há uma desproporção entre os recursos hospitalares, as camas de cuidados intensivos e as pessoas criticamente doentes, nem todos são entubados.”

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NurPhoto via Getty Images

Não há propriamente uma regra escrita sobre como tem de ser feita esta opção. Mas todos os médicos sabem como funciona e aprenderam-no na universidade. “Como regra, e eu entendo que isto é uma expressão bruta, os pacientes com patologias cardiorrespiratórias graves e as pessoas com problemas coronários graves, são avaliados cautelosamente, porque toleram mal a hipóxia [falta de oxigénio] aguda e têm poucas probabilidades de sobreviver à fase crítica”, disse o médico. “Se uma pessoa entre os 80 e os 95 anos tem uma falha respiratória, provavelmente não se continua. Se o paciente tem uma falha multi-orgânica em mais de três órgãos vitais, isso significa que tem uma taxa de mortalidade de 100%. Significa que já foi.”

“Não estamos em posição de tentar milagres. É a realidade”, resumiu aquele médico na mesma entrevista. A necessidade de decidir “em larga escala” sobre a vida e a morte dos pacientes está a levar os profissionais de saúde a colapsar. “Muitos colegas estão a acusar esta situação. Não é apenas a quantidade de trabalho, mas a carga emocional, que é devastadora. Vejo enfermeiros com trinta anos de experiência a chorar, pessoas a terem colapsos nervosos e a começarem a tremer de repente.”

O relato de Christian Salaroli bate certo com um outro, divulgado esta segunda-feira, através do Twitter, pelo médico Jason Van Schoor, que confirmou ao Observador tratar-se de um relato na primeira pessoa que lhe foi enviado por um amigo, médico de cuidados intensivos, a trabalhar no norte de Itália, mas que não se identificou publicamente.

“A situação atual é difícil de imaginar e os números não explicam as coisas, de todo. Os nossos hospitais estão sobrecarregados pelo Covid-19, estão a funcionar a 200% de capacidade. Parámos todas as operações de rotina, todos os blocos operatórios foram convertidos em unidades de cuidados intensivos e estão a desviar ou a não tratar outras emergências como traumatismos ou enfartes. Há centenas de pacientes com falhas respiratórias graves e muitos deles não têm acesso a nada a não ser uma máscara com reservatório”, lê-se nesse testemunho.

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Também este médico fala do drama da escolha entre quem é e quem não é tratado. “Pacientes acima dos 65 anos ou mais novos com comorbidades nem sequer estão a ser avaliados pelos cuidados intensivos. Não digo que não estão a ser entubados, estou a dizer que não estão a ser avaliados”, escreveu o médico, acrescentando que os profissionais de saúde “estão a trabalhar o máximo que podem, mas estão a começar a ficar doentes e emocionalmente sobrecarregados”.

No mesmo relato, aquele médico de cuidados intensivos diz que o padrão se tem repetido em vários hospitais do país. Depois de um pequeno grupo de casos positivos não ser suficiente para forçar uma alteração dos hábitos diários das populações, verifica-se um grande aumento do número de casos que chegam às unidades de saúde, levando ao fim dos stocks de medicamentos — em alguns casos até do oxigénio — e ao contágio de profissionais de saúde. “Torna-se difícil garantir os turnos e a mortalidade dispara também por todas as outras causas, que não podem ser tratadas em condições.

Em declarações citadas por uma reportagem do Politico, dois médicos italianos confirmaram o mesmo cenário nos hospitais do norte de Itália. “É um facto que vamos ter de escolher [quem tratar] e esta escolha vai ser confiada a operadores individuais no terreno, que podem deparar-se com problemas éticos“, admitiu um médico de um dos maiores hospitais da cidade de Milão.

Outro médico, o anestesista Luigi Riccioni — que lidera o comité de ética da Sociedade Italiana de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Cuidados Intensivos e que foi um dos autores das novas linhas orientadoras destinadas a guiar os hospitais italianos sobre a forma de priorizar os doentes com coronavírus —, admitiu à mesma reportagem que “o corpo de um paciente extremamente frágil é incapaz de tolerar certos tratamentos quando comparado com o de uma pessoa saudável“.

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A dimensão do surto do coronavírus em Itália levou, no último domingo, um conjunto de médicos de Milão a assinar uma carta aberta aos médicos de todo o mundo a partilhar o que aprenderam nos primeiros dias. Na carta, os médicos reconhecem a crise em que Itália está mergulhada e apelam aos outros países que preparem com antecedência os protocolos de resposta, de modo a estarem prontos a receber e encaminhar apropriadamente os doentes infetados.

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