As imagens registadas por David Lopes para a SIC não deixam margem para dúvidas: não se vê praticamente ninguém nas ruas de Macau sem máscara. As medidas implementadas pelo Governo logo no final de janeiro — e a experiência dos habitantes com outros tipos de coronavírus, como o SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) — fizeram com que a região tivesse registado, até à data, apenas 10 casos de doentes infetados com o novo Covid-19. Já todos tiveram alta e há mais de um mês que a região não regista nenhum novo caso.
A proximidade da região à s outras regiões da China, com o qual faz fronteira, e a densidade populacional do território — vivem mais de 640 mil pessoas numa região com cerca de 30 quilómetros quadrado — fez soar todos os alarmes logo em janeiro. Durante cerca de um mês e meio, quase ninguém saiu de casa a não ser que fosse estritamente necessário, por recomendação estatal. “As pessoas não saíam de casa para nada que não fosse essencial. As ruas estavam vazias”, contou a jornalista Rita Tavares Teles na mesma reportagem.
Famílias em casa e ‘teletrabalho’, a nova vida dos portugueses em Macau
Ao Observador, o arquiteto Nuno Leal, que mora no país há sete anos, vai mais longe: “Macau parecia uma cidade fantasma, viam-se pouquíssimas pessoas na rua. Saía do trabalho às 6h e tal e parecia que eram 4h da manhã. Contavam-se pelos dedos de uma mão as pessoas com quem me cruzava no trajeto entre o casino e a minha casa, que dura cerca de 15 minutos a pé”, conta. Antes do surto, Nuno usava bastantes vezes o metro para ir trabalhar mas desde o final de janeiro que evita ao máximo os transportes públicos e concentrações de pessoas. “Só saíamos para ir ao supermercado quando era estritamente necessário e cheguei a estar durante três ou quatro dias sem sair de casa.”
Desde segunda-feira que o território parece estar a voltar à normalidade, mas nem por isso o plano do governo abrandou. As recomendações mantêm-se, as conferências de imprensa diárias também se mantém, os casos suspeitos continuam a ser testados, e as pessoas que chegam de países como a China ou Itália continuam a ficar em quarentena obrigatória de 14 dias. As escolas — fechadas por ordem governamental desde final de janeiro — tiveram finalmente data marcada para a reabertura, 20 de abril. Ou seja, durante quase três meses as instituições de ensino deram aulas à distância.
“As escolas vão reabrir, mas os alunos vão ter de usar máscara e de estar a uma distância de pelo menos um metro uns dos outros. Na Europa, se uma pessoa andar de máscara, toda a gente olha para essa pessoa como se fosse uma ave rara, como se fosse um doente, têm vergonha de usar e aqui não têm. A máscara sempre foi usada”, explicava a jornalista na reportagem transmitida.
Nuno Leal corrobora: “Em Macau, Hong Kong e China é muito normal usar máscara. É uma coisa que se usa muito facilmente, para tentar controlar a contaminação por vários vírus”. Foi por isso que não esperou sequer pela recomendação do governo para usar a sua quando saía de casa. “Fi-lo por iniciativa própria, logo a 21 ou 22 de janeiro, mas em poucos dias já toda a cidade andava de máscara“, contava.
Nuno Leal faz parte de uma equipa de design de 70 pessoas que está a programar obras num casino. Ao Observador, explica como tudo se passou na região desde que começaram a surgir as primeiras notícias sobre que se estava a passar no país vizinho, na região de Hubei.
“Apesar de Hubei ser ainda relativamente distante daqui, sentimos que estávamos relativamente perto do epicentro e começou a haver algum tipo de preocupação social, que praticamente terá chegado ao governo”, conta. Pela altura da celebração do Ano Novo chinês (25 de janeiro), o governo obrigou as pessoas que andavam nos transportes públicos a usar máscaras, bem como todas aquelas que tivessem contacto direto com o público e todos aqueles que usassem edifícios públicos. As empresas privadas seguiram as mesmas regras. “O casino onde trabalho também fez um comunicado a obrigar todos os funcionários a usar.”
E isto fez com que houvesse uma corrida às farmácias e ao surgimento de um eventual mercado negro? Não. O governo implementou um programa de 10 máscaras para 10 dias. Ou seja, todas as pessoas tiveram direito a ir comprar 10 artigos destes para usarem nos 10 dias seguintes, a um custo total que não chega a um euro. A compra fica registada numa plataforma informática e mesmo que alguém queira ir comprar mais a outra farmácia, esta recebe um alerta de que aquele cidadão já comprou as máscaras a que tinha direito e não lhe são cedidas mais, explica o arquiteto português de 43 anos.
Quarentena para todos aqueles que viessem de países de risco
Depois das máscaras, o controlo nas fronteiras aéreas, terrestres e marítimas. No princípio de fevereiro, o governo decretou que todas as pessoas que tivessem vindo da China continental tivessem de ficar numa quarentena de 14 dias num hotel na cidade que faz fronteira com a China, Zhuhai. “Num segundo momento, alargaram a quarentena obrigatória a todos aqueles que vinham da Coreia do Sul, Irão e agora também Itália. Mas ontem já disseram que as autoridades também iam pôr em quarentena as pessoas provenientes de outros países europeus”, conta.
Entretanto, o governo de Macau decidiu colocar em nível 2 de alerta de viagem mais quatro países: Alemanha, França, Espanha e Japão. Isto significa que o executivo está macaense está a pedir às pessoas com viagem marcada para estes destinos para abdicarem delas. O governo disse ainda que poderão ser acrescentados mais países à lista das zonas de alta incidência, mas ainda não revelou quais.
A 4 de fevereiro, nova ordem estatal: a partir de dia 5 todos os casinos iam fechar durante 14 dias. E todos os locais que pudessem ter elevada concentração de pessoas seguiram a mesma recomendação: bares, discotecas, restaurantes, ginásio, saunas.
“Todos os sítios onde pudesse haver algum tipo de contacto, proximidade ou socialização fora de alguma forma parados. Pediram aos restaurantes para não servirem comida e para fazerem apenas serviço de take-away.”
Entre a população, toda a gente colaborou e seguiu as recomendações, explicou o arquiteto português. “O governo não mandou fechar tudo e parar tudo, mandou fechar o que não era básico e necessário. No casino, ainda trabalhei alguns dias, mas depois fiquei outros nove a trabalhar a partir de casa. As farmácias e supermercados nunca fecharam, a distribuição nunca fechou.” E houve correria às prateleiras? Alguma, mas muito breve e só para produtos de limpeza e higienização das casas, conta. No dia seguinte, já tudo tinha voltado ao normal.
“Macau tinha de dar prioridade à saúde em detrimento da economia”
Paulo Henriques é jurista, tem 54 anos e vive em Macau (pela segunda vez) desde 2013. Ao Observador, explica que foi crucial a informação que o governo disponibilizou desde o início à população, através das conferências de imprensa e da disponibilidade que tinha para responder às perguntas dos jornalistas. Começou a usar máscara quando a medida foi recomendada e, por trabalhar para a assembleia legislativa, acabou por seguir todas as medidas que o governo implementou.
“Há sempre a preocupação do lado da saúde pública e do lado da economia, mas Macau tinha de dar grande prioridade à saúde em detrimento da economia, por causa da densidade populacional. Se Macau tivesse tido transmissão secundária descontrolada dentro da cidade, ia ser mais do que exponencial. Há condomínios que têm 2 mil, 3 mil frações e Macau não tem uma estrutura de camas hospitalares que esteja preparado para ter um pico de procura de 10 mil ou 20 mil pessoas em simultâneo. Houve mesmo uma grande preocupação em não permitir que o vírus entrasse e, em segundo lugar, se entrasse que se conseguisse detetar para que não houvesse descontrolo e transmissão secundária“, explicou o jurista.
Sobre o impacto que tudo isto está a ter na economia macaense, Paulo Henriques explica que as previsões mais recentes ainda não estão atualizadas, mas que já se antecipa “uma recessão a dois dígitos em 2020, porque grande parte do PIB de Macau se baseia no jogo e no turismo. É inevitável que seja preciso esperar muitos meses até que a circulação de turistas na Ásia retome a normalidade e Macau, como destino de lazer, possa ter os seus visitantes habituais. O PIB vai ressentir-se de forma significativa e há um vasto pacote de medidas de incentivo às famílias que vão implicar um aumento da despesa pública”, explicou.
Para o jurista, a decisão de optar pela salvaguarda da saúde pública em detrimento da economia não levantou grandes dúvidas ao governo, porque Macau “tem reservas significativas” de capital. “É grave, mas é um problema que vai ter resposta”, diz.
Sobre a eventual subida no desemprego que pode haver no país, Paulo Henriques explica que ainda é cedo para fazer estimativas, mas que a grande flexibilidade laboral do país pode levar vários cidadãos a antecipar férias ou a tirar uma licença sem vencimento, regressando ao seu local de trabalho quando a economia melhorar.
Apesar de a atividade já ter regressado à normalidade, com os casinos, função pública, bancos e empresas a funcionar de forma regular, já se sabe que a receita dos casinos caiu perto de 90%, segundo a TVI24, e que há várias empresas em situação de insustentabilidade financeira ou bancarrota. Resta saber se as reservas serão suficientes para fazer face ao aumento do défice da despesa pública, que já são esperados.
Apreensão, tristeza e alguma “vergonha alheia” pelo que veem em Portugal
Apesar de estarem distantes, ambos os portugueses têm acompanhado o que se passa em Potugal e as medidas que estão a ser implementadas. Paulo Henriques assume que quando viu as imagens com as praias cheias de estudantes sentiu um misto entre “estar triste e vergonha alheia”. “Essas imagens passam no resto do mundo pelas redes sociais e tenho alguma tristeza de ver o país a reagir desta forma tão estúpida. O vírus da estupidez ainda é mais rápido a espalhar-se do que o coronavírus”, refere, acrescentando que, na sua opinião, as escolas já deviam ter fechado e controlado os aviões que chegavam da China diretamente ou de Itália. ”
Podiam ter controlado isto melhor, aconselhado as pessoas a usar máscaras em vez de dizerem que as máscaras não servem para nada. São coisas que não percebo. Devem ser os japoneses e os coreanos que são burros por usar máscaras, mas aqui as coisas estão a ficar controladas e na Europa não. Não percebo isto de os portugueses acharem que só acontece aos outros…”
Paulo Henriques alerta para a eventualidade de o Serviço Nacional de Saúde não ter capacidade para dar resposta aos picos de procura. “Se já não tem para a gripe sazonal, para um vírus como este muito menos”, diz, reforçando que vê com “muita apreensão” o que se está a passar no país. “Talvez o tempo de preparação não tenha sido utilizado de forma eficiente e a população nã se consciencializou do perigo que isto representava. o que vamos vendo, até pelas redes sociais, é que as pessoas não estão a ter consciência do que isto significa em termos de saúde pública e das consequências que isto pode ter para a economia e para a saúde pública. Estamos muito apreensivos com o que nos chega de Portugal e apreensivos é eufemismo”.