As mensagens a dizer que o Ibuprofeno causa complicações a doentes de Covid-19 já corriam sem parar nas redes sociais. Mas foi quando França, pela voz das suas autoridades de saúde, fez o mesmo alerta, no sábado 14 de março, que a alegação passou a ter outra força, até porque se baseava num estudo publicado na revista Lancet feito a pacientes com hipertensão e diabetes. Rapidamente, a Organização Mundial de Saúde disse não haver qualquer evidência científica que relacionasse as duas coisas, posição que em Portugal foi seguida pela Direção Geral de Saúde e pelo Infarmed logo no domingo. Dois dias depois, porém, um porta-voz da OMS volta a falar no assunto, e pede que não se faça automedicação com ibuprofeno. A confusão está lançada. Toma-se ibuprofeno ou não?

Para já, em Portugal e na Europa mantém-se o que foi dito. Não há nada que relacione a toma do medicamento com o agravamento de sintomas de doentes de Covid-19. Para a febre, em automedicação, deve optar-se por paracetamol, ideia reforçada também pela Agência Europeia de Medicamentos.

A DGS e o Infarmed, que lançou na terça-feira um comunicado reforçando a posição de domingo, estiveram sempre a acompanhar a situação, depois das novas declarações da OMS. Mas, ao que o Observador apurou, em nenhuma das duas instituições se encarou as declarações de terça-feira, 17 de março, como sendo contraditórias àquela que é, e se mantém, a posição oficial em Portugal. A OMS passou a ter apenas uma posição mais conservadora sobre o assunto, aconselhando os doentes a evitar a automedicação com ibuprofeno, não havendo qualquer instrução semelhante para os profissionais de saúde. Ou seja, jogou pelo seguro: o facto de não haver evidência científica não quer dizer que não venha a existir no futuro.

Um dia depois, na quarta-feira 18 de março, foi a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) a voltar ao assunto. “Ciente das dúvidas que circulam nos órgãos de comunicação social e na opinião pública”, diz em comunicado, a agência volta a reiterar que “presentemente não existe evidência científica que permita estabelecer uma relação entre a administração de ibuprofeno e o agravamento da infeção por Covid-19”.

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“Ao iniciar o tratamento para febre ou dor na Covid-19, pacientes e profissionais de saúde devem considerar todas as opções de tratamento disponíveis, incluindo paracetamol e  anti-inflamatórios não esteroides. Cada medicamento tem os seus próprios benefícios e riscos, refletidos nas informações do produto e que devem ser considerados juntamente com as diretrizes nacionais de tratamento da UE , a maioria das quais recomenda o paracetamol como primeira opção de tratamento para febre ou dor”, lê-se na nota.

A EM frisa que os pacientes que tenham dúvidas sobre o assunto devem conversar com um médico ou farmacêutico, não havendo atualmente “razão para os pacientes que tomam ibuprofeno interromperem o tratamento”.

Os conselhos da OMS

O autor dos mais recentes conselhos da OMS foi Christian Lindmeier, porta-voz da organização. Ao Observador, explicou que “o conselho” que deixou numa conferência de imprensa em Genebra “foi muito mais suave do que os títulos da comunicação social”.

Questionado sobre o estudo publicado na revista científica Lancet, o porta-voz da OMS respondeu que a organização “está a estudar o assunto para dar mais orientações” às autoridades de saúde. E acrescentou: “No entretanto, recomendamos usar paracetamol em vez de ibuprofeno se estiverem a fazer automedicação. Isso é importante.” Se o medicamento for prescrito por um profissional de saúde, “então é com ele”, concluiu, já que o médico deverá conhecer o historial clínico do paciente, sabendo qual o melhor tratamento a seguir.

Ao Observador, Christian Lindmeier frisou que estava a falar de automedicação, não havendo alterações na posição da OMS: não há evidência científica de que o ibuprofeno agrave a situação de saúde dos doentes de Covid-19.

“A OMS está a reunir mais evidências, mas uma revisão rápida da literatura não revelou dados clínicos ou de base populacional publicados sobre este assunto até o momento. Mas estamos cientes das preocupações levantadas sobre o uso do ibuprofeno no tratamento da febre em pessoas com Covid-19. Portanto, a automedicação deve ser evitada e deve-se consultar um profissional de saúde”, disse ao Observador.

Sábado. Ministro francês alerta para a toma de ibuprofeno

No sábado, 14 de março, o ministro da Saúde francês, Olivier Véran, defendeu, numa publicação no Twitter, que os doentes infetados com Covid-19 não devem tomar anti-inflamatórios, como o ibuprofeno, porque estes podem “ser um fator que piora a infeção”. “Tomar medicamentos anti-inflamatórios (ibuprofeno, cortisona, …) pode ser um fator agravante de infecção. Em caso de febre, tome paracetamol. Se já está a tomar medicamentos anti-inflamatórios ou se tem dúvidas, contacte o seu médico para receber aconselhamento”, acrescentou o ministro.

As suas declarações seguem as do diretor-geral da Saúde francês, Jérôme Salomon, que também desaconselhou o uso do medicamento em doentes de Covid-19. “Eventos adversos graves relacionados ao uso de anti-inflamatórios não esteróides (AINE) foram relatados em pacientes com Covid-19. O tratamento de febre ou dor mal tolerada, no contexto de Covid-19 ou qualquer outra virose respiratória, é baseado em paracetamol. Evite a automedicação.”

A base de todas estas declarações é um estudo da Lancet. No domingo, tudo foi esclarecido.

De facto, a revista científica The Lancet lançou, no dia 11 de março, um estudo intitulado “Os pacientes com hipertensão e diabetes estão em maior risco de infeção por Covid-19?”, com base em três estudos feitos a doentes chineses.

Nele, os investigadores admitem que o ibuprofeno aumenta a quantidade no organismo das chamadas enzimas conversoras de angiotensina 2 (ACE2), receptores que são usados pelo novo coronavírus para entrar nas células humanas. Assim, se há mais ACE2 no organismo, maiores são as probabilidades de contrair Covid-19, defendiam os investigadores.

O estudo da Lancet sustentava ainda que os fármacos vulgarmente usados para a diabetes e para a hipertensão, por estimularem as enzimas ACE2, “aumentam o risco de uma infeção grave e fatal com Covid-19”. As hipóteses estão ainda “por confirmar”, lê-se. A ressalva importante a fazer é que o estudo era apenas em pacientes com hipertensão e diabetes.

No mesmo sábado em que o ministro francês deixou o aviso, o pneumologista Filipe Froes alertava o Observador para a necessidade de esclarecer esta dúvida, já que se tratava de uma informação “a confirmar e a validar com a maior brevidade possível”. O médico adiantava ainda que, no que toca às conclusões do estudo aplicadas à hipertensão, as hipóteses foram já colocadas em causa pelo Conselho de Hipertensão da Sociedade Europeia de Cardiologia, que considera que se trata de uma “especulação” sem “base científica sólida”.

“O Conselho recomenda fortemente que médicos e pacientes continuem o tratamento com a terapia anti-hipertensiva habitual, porque não há evidências clínicas ou científicas que sugiram que o tratamento com ACE ou ARB [fármacos anti-hipertensivos] seja interrompido por causa da infeção por Covid-19”, pode ler-se no comunicado.

Este esclarecimento por parte da Sociedade Europeia de Cardiologia levava também Joaquim Ferreira, neurologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a defender, em declarações à SIC Notícias, que “não há necessidade de mudar a medicação para hipertensão fruto deste alerta”.

Domingo. DGS e Infarmed falam em falta de evidência científica

Na véspera da tomada de posição oficial, Graça Freitas, diretora-geral de Saúde, foi absolutamente clara na conferência de imprensa diária sobre o coronavírus: a DGS esteve reunida com o presidente do Infarmed e “vai ser feito um desmentido formal a nível europeu”.

Isto porque, garantia, “nem sobre ibuprofeno nem quaisquer outros medicamentos, existe qualquer prova ou evidência que potenciem a ação do vírus”. Assim, Graça Freitas esclareceu que iria ser feito “um desmentido pelo Infarmed a nível nacional, e por outras instituições de nível europeu, para acabar também com este alarme, que é um falso alarme, não tem nenhum fundamento. Isto dito pelas agências do medicamento que zelam pela segurança dos medicamentos”. A diretora geral referia-se também às publicações que corriam as redes sociais.

Um dia depois, no domingo, o Infarmed reafirmou o que foi dito por Graça Freitas, insistindo que não há dados científicos que confirmem a relação entre a toma de ibuprofeno e qualquer agravamento da infeção pelo novo coronavírus.

“A possível relação entre a exacerbação das infeções, na generalidade, e a toma de ibuprofeno está a ser avaliado na União Europeia no Comité de Avaliação de Risco de Farmacovigilância da Agência Europeia do Medicamento (EMA). Espera-se que esta análise, cuja conclusão se aguarda em maio de 2020, permita esclarecer se existe uma associação entre a toma de ibuprofeno e a exacerbação das infeções. Dado que o ibuprofeno é utilizado para tratar os sintomas iniciais das infeções, será extremamente complexo determinar esta relação”, explicava o Infarmed em comunicado.

Terça-feira. OMS lança apelo a quem se automedica com ibuprofeno

Enquanto a evidência científica não chega, a OMS assume uma postura mais conservadora, jogando pelo seguro. Ao invés de manter apenas a posição de que não há provas de que o uso de ibuprofeno possa ter ligação com agravamento de sintomas de Covid-19, o seu porta-voz fez um apelo a quem tem sintomas ligeiros e está a decidir sozinho a sua medicação. O conselho? Tomar antes paracetamol.

Christian Lindmeier pediu que as pessoas que apresentem sintomas semelhantes aos associados à Covid-19, como febre ou tosse seca, não tomem ibuprofeno sem prescrição médica.

Depois destas declarações, também o Infarmed emitiu um novo comunicado, onde reitera tudo o que defendeu no domingo: não há evidência científica, o caso está a ser estudado pela Agência Europeia de Medicamentos, em articulação com as agências nacionais e a rede de Chefes das Agências de Medicamentos da União Europeia. “É expectável uma tomada de posição conjunta e consolidada a nível da União Europeia, que será partilhada em breve com a comunicação social e com os cidadãos”, lê-se no comunicado.

Até lá, o Infarmed volta a lembrar: “No tratamento da febre, o medicamento preferencial, em automedicação, é o paracetamol.”