Na primavera de 1983, os cientistas já tinham deixado cair designações como “doença dos quatro H’s” (hemofílicos, haitianos, homossexuais e heroinómanos) e cunhado o termo SIDA, mas sobre o vírus que provocava a síndrome, que desde os dois anos anteriores se multiplicava em todo o mundo, ainda não se sabia praticamente nada.
Ainda assim, em pleno trabalho de parto, quando percebeu que havia complicações e que estava com hemorragias demasiado graves, Deborah Birx, então com 27 anos e médica do exército americano, teve presença de espírito para antecipar os riscos. Antes de desmaiar, gritou, desesperada, para o marido: “Não os deixes darem-me sangue!”. Ele cumpriu a ordem. Os lotes utilizados pelo hospital nessa altura, veio a saber-se anos mais tarde, estavam infetados com HIV.
O episódio tem sido recuperado pela imprensa internacional agora que Debbie Birx, de 63 anos, foi apresentada pelo vice-presidente Mike Pence como o seu “braço direito” na luta contra o novo coronavírus, mas a história não é nova. Em 2014, na altura em que o então presidente Barack Obama a fez responsável pelo Pepfar, o Plano de Emergência do Presidente para o Combate à Sida, foi John Kerry, então secretário de Estado, quem a contou.
“Este foi o primeiro contacto da Debbie com a Sida e mudou-a, literalmente. Fê-la pensar muito, não apenas sobre os riscos desta nova doença, mas também na sua responsabilidade em combatê-la”, disse o democrata, agora recordado pelo New York Times, como que a justificar a escolha.
Não é como se fosse mesmo necessário fazê-lo: quando Barack Obama a nomeou embaixadora dos Estados Unidos para o combate global à Sida, Debbie Birx, médica imunologista e coronel do Exército na reserva, já tinha um currículo inigualável e cerca de 25 anos de trabalho na área. Aliás, até ter sido apresentada como parte da equipa escolhida por Donald Trump para liderar a resposta americana ao novo coronavírus, profissionalmente não tinha feito outra coisa.
Sob a alçada do Departamento de Defesa, que começou a estudar a síndrome e o vírus praticamente desde a primeira hora, quando jovens soldados até então saudáveis começaram a cair, vítimas de uma doença desconhecida, Debbie Birx fez investigação e trabalhou no desenvolvimento de métodos de tratamento e de potenciais vacinas — “Eram os anos 80, tinhas formação em medicina e havia toda uma panóplia de instrumentos de alta tecnologia e capacidade para diagnosticar tudo. Quando, de repente, não só não conseguíamos fazer diagnósticos, como nem sequer percebíamos qual era o problema, e muito menos como tratá-lo, foi devastador”, recordou em 2019 numa entrevista ao George W. Bush Presidential Center (foi o 43.º presidente dos EUA quem criou, em 2003, o Pepfar).
“Eles morreram com tanta coragem e com tanta disponibilidade para experimentar coisas diferentes, mesmo sabendo que isso podia não os ajudar, mas que poderia fazer a diferença para as pessoas que viriam depois deles. Nunca tinha visto tamanho nível de altruísmo, entre a morte e o desespero, por parte de pacientes”, disse na mesma ocasião, sobre os militares que viu perecer com a doença e que, reconheceu, lhe deram uma causa para a vida.
A partir daí foi sempre a subir, tanto no conhecimento sobre a doença como na carreira: depois de alguns anos a coordenar o serviço de imunologia do Instituto de Investigação do Exército Walter Reed, Debbie Birch tornou-se diretora do programa nacional de investigação militar sobre o HIV, de onde saiu em 2005 para liderar a divisão internacional sobre Sida do CDC, o Centro de Prevenção e Controlo de Doenças norte-americano, onde se manteve até 2014.
Um currículo que mais do que justifica o facto de a imprensa americana a descrever como uma espécie de “lenda” no combate ao HIV, e como uma das pessoas — senão a pessoa — mais capazes para determinar como agir agora que a ameaça é outra. É também isto que ajuda a explicar as razões por que Birch é uma entre os cinco escassos funcionários em cargos de nomeação política que transitaram da administração Obama para a Casa Branca presidida por Donald Trump — “uma raridade”, salientava a Bloomberg, uma semana depois de a imunologista ter decidido aceitar o novo cargo.
“Ela era uma estrela na altura e o que aconteceu ao longo dos anos foi que se tornou numa super estrela”, disse recentemente aos jornalistas Anthony S. Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infeciosas, também ele membro da task force reunida por Trump para combater a Covid-19 e uma espécie de mentor de Debbie Birx, nos seus tempos de estágio.
“A Embaixadora Birx é uma cientista, médica, e mãe, com três décadas de experiência em saúde pública, incluindo doenças virulentas, respetivas vacinas e coordenação entre agências. Ela tem utilizado a melhor ciência para mudar o curso e manter a pandemia do HIV sob controlo, comunidade a comunidade e país a país. Desde há três décadas que no seu foco estão a imunologia do HIV/SIDA, a investigação de vacinas e a saúde global. Ela desenvolveu e patenteou vacinas, e inclusivamente liderou um dos mais influentes ensaios de vacinas contra o HIV alguma vez feitos”, foi como a Casa Branca a apresentou, em comunicado.
Em 16 anos de existência, o Pepfar, graças à doação de vários milhões de dólares e da intervenção direta em dezenas de países, já terá salvo 17 milhões de vidas em todo o mundo e evitado outros tantos milhões de infeções por HIV — parte desta contagem pertencerá a Deborah Birx, isso é inequívoco.
Quem com ela trabalhou não espera menor empenho nem determinação, na hora de lutar contra um novo vírus, o SARS-Cov-2. “Quando é preciso tomar decisões difíceis, ela toma-as”, garantiu ao Guardian Carlos del Rio, professor no departamento de saúde global da Universidade de Emory, em Atlanta, e colaborador de Birx há mais de 20 anos.
Para exemplificar, contou um episódio, que terá acontecido há uns anos, numa altura em que a Organização Mundial de Saúde aconselhou que um determinado medicamento para o HIV parasse de ser administrado aos doentes. Antes de cumprir a decisão, Birx, descrita essencialmente por quem a conhece como uma profissional “orientada pelos dados”, quis ouvir o que tinham a dizer os cientistas da Pepfar. Quando eles lhe disseram que não estavam de acordo, deu-lhes ouvidos e ignorou os conselhos da OMS.
“No final de contas, ela estava certa. Esta é a decisão certa. Ela ouviu a informação, olhou para a informação e disse, ‘Vamos continuar’. É uma líder ousada. Tenho muito respeito por ela.”