A diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, considera que “não há nenhuma evidência científica” que sustente a eficácia de ações de desinfeção das ruas e espaços públicos no combate ao coronavírus. Porém, há várias câmaras municipais por todo o país que o estão a fazer — e em alguns casos a medida foi mesmo recomendada e validada pelas autoridades locais de saúde.
https://observador.pt/2020/03/25/tres-quartos-dos-portugueses-concordam-com-estado-de-emergencia/
Graça Freitas falou do assunto na manhã desta quarta-feira, na habitual conferência de imprensa diária sobre a evolução da pandemia da Covid-19 em Portugal. Questionada sobre as ações de desinfeção de rua feitas por várias autarquias, a diretora-geral da Saúde disse que “não há nenhuma evidência científica de que sejam eficazes e portanto não é uma medida que se recomende“.
“Não é prioritário ter trabalhadores a desinfetar ruas”, sustentou Graça Freitas. “O que vai travar a Covid-19 é estarmos distantes uns dos outros.”
De todo o mundo têm chegado imagens de ações de desinfeção das ruas e espaços públicos em larga escala. Na China, as autoridades chegaram a desinfetar cidades inteiras, em alguns casos duas vezes por dia, com um desinfetante à base de lixívia; no Irão, outro dos grandes focos do surto a nível mundial, o governo recorreu a camiões para espalhar desinfetante pelas ruas; no norte de Itália, um cenário parecido.
“Se for por excesso de zelo, que seja”
Uma das ações de desinfeção em maior escala tomadas em Portugal foi a levada a cabo pela Comunidade Intermunicipal do Oeste, que anunciou recentemente uma desinfeção das ruas e espaços públicos dos doze concelhos que compõem a comunidade. No comunicado em que a medida foi anunciada, os autarcas dizem que a desinfeção foi decidida “tendo por base as recomendações da Direcção-Geral da Saúde (DGS) e da Autoridade de Saúde Local“.
“Os Municípios do Oeste estão a promover uma campanha de desinfeção em locais onde se verifica maior tráfego pedonal: superfícies comerciais, postos de combustível, farmácias, centro de saúde, forças de segurança, multibancos, cafés, quiosques, contentores para deposição de resíduos sólidos urbanos, paragens de autocarro, entre outros espaços que, na atualidade e neste contexto epidémico, são mais suscetíveis de passagem de munícipes”, lê-se na nota.
Da região Oeste fazem parte os concelhos de Alcobaça, Alenquer, Arruda dos Vinhos, Bombarral, Cadaval, Caldas da Rainha, Lourinhã, Nazaré, Óbidos, Peniche, Sobral de Monte Agraço e Torres Vedras.
Contactado pelo Observador, o presidente da Câmara Municipal de Alcobaça, Paulo Inácio, confirmou que “a autoridade local de saúde recomendou e validou” a medida adotada pelos municípios. Inácio referia-se, como explicou depois, ao Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Oeste Norte, da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo.
A fórmula do desinfetante, à base de lixívia, foi inclusivamente recomendada por um antigo comandante nacional da Proteção Civil, José Moura, natural das Caldas da Rainha, e depois remetida para a coordenação do ACES Oeste Norte, que aprovou a implementação da medida.
“Nós em Alcobaça estamos a fazer uma desinfeção nos locais com maior probabilidade de passar o público. Algumas ruas, passeios, junto ao mobiliário urbano“, explicou Paulo Inácio. O autarca sublinhou que “no contexto internacional foram adotadas algumas medidas iguais” e destacou que “a desinfeção não faz mal a ninguém”.
“Se for por excesso de zelo, que seja. Desde que uma autoridade médica garante que o excesso de zelo não faz mal à saúde, prefiro”, disse Inácio, reagindo às palavras da diretora-geral da Saúde. “Sinto que estou a fazer o meu papel para proteger as pessoas.”
Produto é eficaz, medida não tanto
De acordo com o comunicado da Comunidade Intermunicipal do Oeste, o produto utilizado para a desinfeção dos espaços públicos “tem na sua composição lixívia, pelo que os Municípios apelam à população para ter atenção aos seus animais, caso passem pelos locais desinfetados, e para respeitar as zonas de intervenção, não se aproximando das operações em curso”.
Uma solução à base de lixívia é a que tem sido usada por todo o mundo neste tipo de ações de desinfeção. Segundo explicou ao Observador a infecciologista Ana Horta, este produto é eficaz na eliminação do coronavírus. “A lixívia é ativa e é com isso que limpamos o calçado, por exemplo, quando estamos em contacto com os doentes de Covid-19“, explicou a especialista.
Desinfetar os espaços públicos “pode ser uma boa opção“, dada a gravidade da situação da pandemia em Portugal. “Tudo o que for possível para combater o vírus pode ser uma boa opção”, reiterou Ana Horta, sublinhando que é preciso entender que meios humanos são necessários para aplicar a medida e qual o investimento e o risco que tal comporta. “Fechar tudo“, destacou, deve ser a primeira opção para o combate à disseminação do vírus.
A comunidade científica tem, com efeito, destacado que, embora o produto seja eficaz na destruição do coronavírus, o esforço de desinfetar espaços públicos em larga escala pode revelar-se inglório — uma vez que é necessário desinfetar repetidas vezes as zonas em questão e usar enormes quantidades de produto para limpar superfícies e objetos quando, na verdade, a grande maioria dos contágios acontecem através do contacto direto entre seres humanos.
De acordo com especialistas citados pela revista Science, os desinfetantes — incluindo a lixívia, mas também o sabão e as soluções à base de álcool — têm como objetivo destruir a camada protetora do vírus, composta por gordura, matando-o. Porém, isto é precisamente o que justifica que a lavagem das mãos seja o método mais eficaz, uma vez que, de acordo com os epidemiologistas citados pela revista, o contacto humano com o vírus a partir de superfícies infetadas é relativamente limitado.
Por outro lado, o recurso em larga escala a dispersão de desinfetante à base de lixívia pode ter um impacto negativo da saúde de quem o inala — sobretudo nos trabalhadores que realizam as operações de desinfeção. A inalação de lixívia, produto irritante para as mucosas do corpo humano, está associada a um aumento do risco de doenças pulmonares, algo que é verificado habitualmente em pessoas que trabalham em limpezas.
Por isso, mais do que espalhar grandes quantidades de lixívia nos espaços públicos, é importante reduzir os contactos entre pessoas e lavar as mãos regularmente, conclui o artigo da Science, em linha com aquilo que têm sido as recomendações da Organização Mundial da Saúde e da DGS.