Francisco Veloso é diretor da Business School do Imperial College, a instituição britânica que fez alguns dos estudos sobre saúde pública que acabaram por influenciar as decisões de Boris Johnson, que mudou o rumos das políticas que estavam a ser adotadas em relação ao surto de Covid-19 no Reino Unido (sobretudo graças ao trabalho desenvolvido pela equipa liderada pelo investigador Neil Ferguson), e que também fez Donald Trump repensar a abordagem a americana.

Em entrevista à Rádio Observador (conduzida por Ana Filipa Rosa e Diogo Teixeira Pereira), Francisco Veloso explica que a sustentabilidade dos sistemas de saúde foi fundamental para tomar decisões. Lembra que o mundo não poderá aguentar a situação de “lockdown” durante muito tempo e acredita que, mesmo antes de uma vacina, outros métodos de tratamento eficaz serão criados e disponibilizados, de forma a aliviar as medidas impostas, mesmo que de forma gradual.

“Se ficássemos um ano assim a economia iria desaparecer como a conhecemos”

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A resistência apresentada pelos governos britânico e americano a medidas agressivas de isolamento distanciamento social motivou, ao longo destes dias, muitas críticas. Foi difícil convencer, cientificamente falando, estes dois executivos?
Estamos a viver uma situação muito única e extraordinária e é muito difícil de saber o que fazer antes de chegar à altura. Aliás, neste momento se calhar o país onde está a haver uma estratégia mais próxima daquela que era a estratégia original de Boris Johnson é até a Holanda. Há uma diversidade de perspetivas relativamente à forma como se deve abordar esta situação extraordinária e que tem a ver com a informação que existe no momento disponível e com a forma como cada um dos países pensa que será melhor responder. Aquilo que acontecia e acontece ainda é que na fase inicial da doença havia muito poucos dados disponíveis e muito pouca informação e, por isso, as decisões que estavam a ser tomadas nessa altura incluíram o que se sabia então. E essas foram as decisões que o governo inglês tomou nesse momento. Essa foi a realidade e isto tudo veio a influenciar as decisões precisamente devido à informação que trouxe.

Estamos a falar de uma análise que levou os governos do Reino Unido e dos Estados Unidos a mudarem de estratégia de combate. Estes dois países que não estavam a apostar no isolamento, pelo menos massificado. Quais foram os argumentos que convenceram Boris Johnson e Donald Trump?
Numa fase inicial da doença, a principal preocupação de todos os grupos que estavam a olhar para esta questão do ponto de vista analítico e de modelação era evidente: até que ponto é que este vírus é mortal, qual a taxa de mortalidade do vírus, e até que ponto é que este vírus é transmissível, ou seja, qual é a facilidade ou dificuldade com que este vírus se transmite. Isso vai determinar o envelope do grau de risco associado a este mesmo vírus, ou seja, se tivéssemos uma taxa de mortalidade igual à da gripe, que temos todos os anos, a preocupação com este vírus era completamente diferente da que existe. Num segundo momento, a partir do momento em que começou a haver alguns dados para caracterizar a dimensão da propagação e da taxa de mortalidade, começou-se a trabalhar num outro tipo de dados: qual a percentagem dos doentes que precisam de aceder a cuidados de saúde, em particular a cuidados de saúde intensivos. Aquilo que tem sido mais noticiado é a questão do acesso aos ventiladores. Portanto, quantos ventiladores são necessários? Aquilo que foi mais crítico no estudo do Neil e da sua equipa surgiu dos dados detalhados da Itália e da China e também da informação detalhada sobre o nível de apoio e resposta que o NHS [serviço nacional de saúde britânico] poderia dar. Perceberam que não era só uma questão de taxas de mortalidade ou níveis de infeção. O que iria acontecer se não fosse feito nada é que a necessidade de apoios médicos cuidados seria oito vezes maior do que a capacidade que o sistema de saúde ia ter.

Foi esse efeito devastador que terá convencido os dois executivos a tomar medidas diferentes?
Exatamente, porque essa modelação e o cuidado do trabalho que foi feito e a informação detalhada sobre o facto de ir acontecer que iriam existir muitas pessoas que provavelmente poderiam sobreviver se tivessem cuidados médicos, mas que não os iriam ter porque simplesmente não estavam disponíveis, é que alterou de uma forma muito significativa a perspetiva com que os governos olharam para o que tinham de fazer.

Francisco Veloso é diretor na Business School do Imperial College

Na sua perspetiva, a economia mundial poderá funcionar nestes moldes durante quanto tempo? Aguentará, por exemplo, um ano nesta situação?
Não, acho que um ano seria devastador a um nível muito significativo. Acho que um trabalho muito importante que está a começar a ser feito é precisamente perceber como é que, mesmo não havendo uma vacina disponível, a partir do momento em que começa a haver alguns tratamentos que minoram o impacto da doença e começa a haver um outro aspeto muito importante, que é a disponibilidade de testes em massa, como é que podemos começar a relaxar algum do nível de constrangimento sem, no entanto, arriscar o ressurgimento da doença à escala com que ela está neste momento a funcionar. Esse vai ser um foco muito importante para tentar encontrar esse equilíbrio. Mesmo em seis meses, que será um valor que me parece que é difícil de ultrapassar tendo em conta a situação em que estamos, já vai ter efeitos absolutamente devastadores. Se tivéssemos de esperar um ano neste contexto, simplesmente a economia iria, em larga escala, desaparecer como a conhecemos. Seria um efeito que demoraria uma década ou mais a recuperar.

Não é, portanto, expectável que tenhamos um dia em que vejamos as fronteiras a reabrir e os voos a serem retomados, ou seja, que toda a economia volte ao normal de um dia para o outro?
Não. De um dia para o outro não será, tenho a certeza absoluta. Aliás, o estudo do Neil fala sobre essa questão. Portanto, o que vamos começar a ter é algum relaxamento das atividades de contenção, de forma a que comece a recuperar alguma da atividade económica, mas até termos ou uma vacina ou efeitos de tratamento com níveis de eficácia muito significativos, e seria excelente que o viéssemos a ter. Há agora muitos medicamentos a entrar em testes clínicos e vacinas também e, portanto, gostaria muito que daqui a pouco tempo houvesse uma notícia a dizer que há um tratamento que mitiga em grande medida os efeitos do vírus, mas até esse momento vamos ter de fazer uma gestão difícil entre a supressão do vírus ou da economia. Portanto, o que vamos ter é um abrandar e acelerar das medidas, uma oscilação durante os próximos meses. Portanto, acho que é essa a realidade para a qual nos vamos ter de preparar, em que o nível de supressão ou relaxamento vai depender do nível de confiança que tivermos na existência destes elementos de entendimento e ataque à doença e também da prioridade de retoma da economia, que estará presente, como é evidente, no espírito de todos.

Como é que olha para a estratégia que tem sido seguida por Portugal?
Como tenho desafios deste lado, não tenho seguido com muito detalhe, mas parece-me que a estratégia de supressão e isolamento social que foi decretada era claramente necessária. Diria que, sem conhecer os números portugueses e precisamente pela razão que apontei – que foi a principal que levou a que o governo inglês alterasse a sua perspetiva – quando sabemos que os serviços de saúde têm estado num contexto de alguma fragilidade, diria que essa preocupação seria ainda mais significativa no contexto português. Portanto, as medidas de isolamento social para tentar conter a evolução do número de casos e permitir que os serviços de saúde deem resposta aos casos que necessitam desse apoio, era absolutamente crítico fazê-lo. Acho que estamos a fazer aquilo que é necessário. Como é evidente, agora temos de começar a pensar em medidas complementares, nomeadamente os testes, material de proteção e todos esses outros elementos que são também necessários e que tenho percebido que são neste momento algumas das dificuldades que existem em Portugal.

Itália foi a base do estudo sobre o qual temos estado a falar. Como é que olha para estes dados?
Itália teve esta combinação de fatores: não só a idade da população, que é mais elevada, como em muitos outros sítios da Europa; e depois a surpresa e a velocidade com que isso aconteceu, que levou a esta situação extrema dos serviços de saúde. Portanto, temos assistido com muita dificuldade e com muito constrangimento a situações extremas que se estão a viver no contexto dos serviços de saúde italianos. Esse é um dos fatores muito complicados nesta doença: não só a taxa de mortalidade, mas a necessidade de apoio médico com algum cuidado que uma fração importante da população afetada pelo vírus requer e, por isso, a dificuldade que os sistemas de saúde têm em reagir. É impossível sabermos qual seria a taxa de mortalidade se os serviços de saúde tivessem conseguido chegar com o mesmo grau de qualidade e apoio a todos os que ficaram doentes. Com isso não estou a fazer nenhuma crítica aos serviços de saúde, que têm sido absolutamente extraordinários em todo o lado, mas apenas às limitações do número de camas, ventiladores e pessoas do sistema de saúde disponíveis para dar resposta à enorme onda de casos que se têm verificado em Itália.