A creche e pré-escolar “Voar mais alto”, em Setúbal, recusou receber uma criança de três anos por falta de funcionários. As colaboradoras submeteram uma baixa médica por “doença natural” horas depois e no dia seguinte a uma reunião em que foram informadas de que iriam acolher o filho de uma enfermeira — e na qual foram informadas das medidas de proteção e não terão levantado qualquer problema.

A informação foi confirmada ao Observador pelo presidente da associação Baptista Shalom, proprietária da creche. Se esse foi o motivo pelo qual as colaboradoras ficaram de baixa? “Podemos deduzir o que quisermos, mas provar, não podemos provar nada”, afirma Joaquim Moreira, presidente da associação. Isto apesar de também dizer que ficou “pessoalmente dececionado” com as funcionárias pela decisão inesperada, já que, na véspera, tinham dito que “podia contar com elas”.

O caso, que remonta ao final do mês passado, levou a Ordem dos Enfermeiros a fazer uma queixa ao Ministério da Saúde, por considerar a situação “manifestamente grave”, e ganhou proporções nas redes sociais, com publicações a acusarem a creche e os funcionários — sem identificarem diretamente a “Voar mais Alto” — de se negar a acolher a criança por ser um risco devido à profissão da mãe.

Acusações que levaram o responsável pela associação a deixar um comunicado no site e na página de Facebook da Baptista Shalom, no qual nega as acusações que são imputadas à instituição. “Encontra-se assim, a ser veiculado nas redes sociais, que a ABShalom se recusou a receber uma criança na sua Creche “Voar mais Alto”, em virtude da mãe ser enfermeira no HSB [Hospital São Bernardo, que pertence ao Centro Hospitalar de Setúbal]. Tal afirmação é por nós repudiada por ser falsa e totalmente adversa à forma de estar e princípios da ABShalom (…)”, lê-se na publicação, que data de 3 de abril.

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O comunicado, assinado pelo presidente Joaquim Moreira, refere ainda que a instituição irá “agir criminalmente contra todos que, sem base em fundamentos reais ou factos verdadeiros publiquem ou divulguem publicações com factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança depositada” na associação.

Num relato sobre o caso, o responsável pela instituição explica ao Observador que foi contactado pela Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS) após o anúncio do encerramento dos estabelecimentos de ensino, no sentido de perceber se a associação estaria disponível para receber os filhos dos profissionais de saúde e das forças de segurança.

Imediatamente dissemos que sim”, diz o presidente desta Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), por telefone ao Observador.

Logo nessa altura, a associação contactou cinco pais, cujos filhos já frequentavam a creche e que pertenciam aos grupos profissionais que poderiam usufruir deste serviço, mas nenhum precisava de deixar as crianças na creche.

Ficámos a aguardar um contacto. Ainda não tinha saído nem na Segurança Social, nem na CNIS a lista das associações que iriam estar disponíveis [para receber estes menores]. Quando saiu, estava lá o nosso nome.”

Além da enfermeira do Centro Hospitalar de Setúbal, a instituição recebeu “alguns contactos” de outros pais que levantaram a hipótese de vir a necessitar de uma creche para os seus filhos futuramente. Contudo, apenas a profissional de saúde em causa precisava desde logo que o estabelecimento acolhesse o filho.

“Associação foi corretíssima a tratar do assunto”

Ainda antes de ter sido feito o pedido para receber o filho da enfermeira, o número de funcionários já era mais reduzido do que o habitual, sobretudo por causa do fecho das escolas. “O pessoal que tem filhos menores submeteu baixa — é o caso de grande parte dos funcionários da educação — e ficámos com seis auxiliares e uma educadora que estava a estagiar. Ainda não tínhamos tido o contacto de ninguém, mas reuni-me com elas e disse que era possível que recebêssemos o contacto de uma mãe que iria precisar que ficássemos com a criança. Houve o contacto desta mãe e eu disse que teríamos todo o gosto em recebê-la”, conta o presidente da associação.

Após este contacto, foi feita uma nova reunião com as funcionárias para “perceber o que era necessário para receber esta criança”. As colaboradoras, segundo Joaquim Moreira, disseram que precisavam de luvas e máscaras. “Custaram muito dinheiro, mas nós encomendámos e preparámos tudo” para acolher o menor, indica o responsável pela Baptista Shalom.

Falámos com todas as funcionárias e perguntámos se alguém tinha intenção de meter baixa — não por causa da senhora, nós não a conhecíamos — e todas disseram que, em princípio, não.”

As colaboradoras souberam, nessa reunião, que a mãe da criança era enfermeira. “Perguntaram que cuidados podiam ter, se podiam tomar banho e mudar de roupa na creche. Foi tudo combinado”, recorda Joaquim Moreira ao Observador, acrescentando que, na mesma reunião, estavam três membros da direção da instituição e que um deles até perguntou às funcionárias se tinham “quaisquer dúvidas ou receios” antes de a mãe ser contactada: “Ninguém disse nada, antes pelo contrário.

Foi então que começaram a surgir, via e-mail, as baixas por “doença natural”. “Nesse dia, à noite, recebemos duas baixas e no outro dia, recebi o resto, à exceção de uma auxiliar. A educadora que estava a estagiar interrompeu o estágio, só ficou uma auxiliar”, afirma o presidente da associação.

Não disseram nada. Deixaram-me pessoalmente dececionado, porque disseram na véspera que podia contar com elas.”

A associação, que tinha contactado a enfermeira no dia anterior para avisá-la de que poderia deixar o filho na creche na segunda-feira seguinte, voltou a ligar para a mãe, na sexta-feira dia 27 de março, para avisá-la de que, afinal, não poderia receber a criança, porque tinha ficado sem funcionárias. “Telefonei à diretora para informar a mãe que, infelizmente e com pena minha, fiquei sem pessoal”, relata o presidente. “Assim que soube que só tinha uma auxiliar, mandei logo avisar a mãe.”

Joaquim Moreira diz também que falou com outros pais que tinham deixado em aberto a possibilidade de lá colocar os dependentes e que comunicou à União das IPSS de Setúbal e à Segurança Social da impossibilidade de acolher crianças por falta de funcionários. “Como associação, tive pena de não receber a senhora.” Foi aliás isso que explicou à enfermeira, numa troca de mensagens, referiu ainda.

A associação foi corretíssima a tratar do assunto. O resto são tudo deduções, são especulações. Tenho pena do que aconteceu, porque somos uma associação disponível para ajudar as pessoas”, garante ainda Joaquim Moreira ao Observador.

Atualmente, a “Voar mais alto” está encerrada e, de acordo com o presidente, a associação vai entrar em lay-off por falta de receitas.

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Segundo o presidente da CNIS, esta foi uma das três creches identificadas no distrito de Setúbal para receber os dependentes dos profissionais de serviços essenciais: o Centro Social e Paroquial da Costa da Caparica, em Almada, e o Centro Social e Paroquial de Santo André do Barreiro, no Barreiro, além da “Voar mais Alto”.

O padre Lino Maia explica ao Observador que, logo após o encerramento os estabelecimentos de ensino, a secretária de Estado da Ação Social pediu à confederação para identificar uma creche em cada distrito do país que pudesse acolher estas crianças, uma vez que a maior parte são instituições associadas da CNIS.

“Em todos os distritos, à exceção de Beja, identifiquei uma creche ou mais — entre uma e três — para receber estas crianças”, adianta o responsável pela CNIS ao Observador, que confirma o encerramento da creche “Voar mais alto”, mas não soube precisar ao certo o que aconteceu: “Aquilo que foi pedido foi uma por distrito e como de Setúbal me tinham destacado três, relevei a situação, porque ainda havia duas.”

Caso chega ao Sindicato e à Ordem dos Enfermeiros

O caso de uma creche ter recusado aceitar uma criança por a mãe ser enfermeira chegou ao Sindicato dos Enfermeiros, que fez uma denúncia à Segurança Social e à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE). Este sindicato enviou um ofício à presidente da CITE, onde relatam várias situações de pressões feitas a enfermeiros, dando como exemplo “creches que não recebem os menores”.

“Recebemos através de vários meios, denúncias de todo o País, sobre pressões ilegítimas sobre os enfermeiros no sentido de não apresentarem o formulário da Segurança Social para apoio a filhos menores de 12 anos e apresentarem-se ao trabalho mesmo sem garantir a segurança e proteção dos filhos (cônjuges que pretencem a setores essenciais, familiares pertencentes a grupos de risco, creches que não recebem menores, etc)”, lê-se no documento a que o Observador teve acesso e cujo assunto é “Proteção da Parentalidade”.

O Observador questionou a CITE relativamente a este ofício — se o tinham recebido, quando e o que tencionavam fazer relativamente ao mesmo —, mas até ao momento não obteve resposta.

Já a Ordem dos Enfermeiros denunciou o caso à ministra da Saúde, através de um ofício que data do dia 1 de abril. No documento, a que o Observador teve acesso, a Ordem diz que houve uma criança que foi recusada numa creche por ser filho de uma enfermeira, uma situação que considera “manifestamente grave” e que fere “os deveres mais elementares que a atual situação exige, já de si potenciadora de instabilidade e angústia entre os profissionais abrangidos”.

O Ministério da Saúde confirmou ao Observador que recebeu deste ofício no dia 3 de abril, tendo reencaminhado o documento para o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social — que tutela as creches — e para o Ministério da Educação.

O Observador também questionou o Instituto da Segurança Social relativamente a este caso. O organismo começou por referir que, após o encerramento das escolas, a creche foi “a resposta social mais procurada pelos profissionais de serviços essenciais”.

A creche foi “a resposta social mais procurada pelos profissionais de serviços essenciais”, diz o Instituto da Segurança Social

Através do Centro Distrital de Setúbal, o instituto entrou em contacto com algumas instituições para que, “junto dos seus utentes e da própria comunidade local”, identificassem os profissionais de serviços essenciais que necessitassem deste tipo de resposta.

Desse levantamento de necessidades, reportado pelas próprias, foi possível identificar em cada concelho pelo menos uma Instituição com disponibilidade para reiniciar a sua atividade, dependendo da procura efetiva”, refere a Segurança Social.

No concelho de Setúbal, acrescenta ainda o instituto, a instituição que se disponibilizou e que tinha condições “para responder às necessidades identificadas foi a APPACCF (Associação de Professores, Pais e Amigos das Crianças do Casal das Figueiras) e não a creche e pré-escolar “Voar Mais Alto“.

Não é isso, contudo, que relata o presidente da CNIS. Ao enviar ao Observador a lista das creches e dos infantários disponíveis para acolher os dependentes dos profissionais dos serviços essenciais, o padre Lino Maia sublinha que a creche “Voar mais alto” já não está da lista, uma vez que tinha encerrado. O que leva a supor que constaria numa versão anterior da mesma lista. Aliás, o presidente da associação enviou ao Observador a lista que diz ter recebido após se ter mostrado disponível para acolher as crianças em questão e a instituição é um dos três estabelecimentos do distrito de Setúbal.

Comparando os dois documentos, é possível ver outras diferenças. Por exemplo, relativamente ao distrito de Aveiro, a primeira versão do documento tinha três creches disponíveis em Aveiro e uma em Santa Maria da Feira, enquanto que a outra versão só tem duas em Aveiro e uma em Santa Maria da Feira. Já Évora não constava na lista inicial e no outro documento, o distrito já tem duas creches disponíveis.

De acordo com o responsável pela Baptista Shalom, a APPACCF foi a creche escolhida depois de terem comunicado a impossibilidade de acolherem as crianças.

O Observador pediu mais esclarecimentos ao Instituto da Segurança Social relativamente a esta situação, mas continua a aguardar uma resposta.