O que é que há em Portugal que não há noutros países? Foi com esta pergunta que Fatima Durkee e Astrid Suzano se meteram no carro e começaram a percorrer o território nacional. Na altura, em 2015, a ideia era desenvolver um projeto de residências para artistas estrangeiros que quisessem trabalhar com a cultura local, dos materiais aos edifícios. “Através dos materiais entrámos no mundo dos artesãos e ficámos fascinadas com a diversidade de técnicas que encontrámos. Nos Estados Unidos viajamos sete horas e é tudo igual, aqui viajamos sete horas e é tudo diferente”, diz Fatima, que acabou mesmo por trocar Nova Iorque por Lisboa.
Cestaria, cerâmica, cortiça, bordado, vidro, madeira, tapeçaria, tecelagem. A ideia das residências não andou para a frente, mas as duas arquitetas perceberam que tinham outra mais aliciante em mãos: “criar uma base de dados dos artesãos que estão a trabalhar com técnicas tradicionais portuguesas”, diz Astrid, e disponibilizá-la na internet, para designers e outros interessados. Essa ideia também acabaria por sofrer alterações, o que leva a dupla a afirmar: “Íamos só fazer uma base de dados, acabámos com um projeto social.”
Porque o que a pesquisa mostrou, já no terreno, foi que “muitos artesãos não estavam preparados para receber os designers diretamente”, diz Astrid, “e não podíamos simplesmente colocar a informação online, era preciso acompanhá-los”. Outras realidades mostraram-se muito diferentes da visão romântica da oficina empoeirada: “A cestaria de empreita, por exemplo, é a mais mal paga do Algarve. A idade média destes cesteiros é de 73 anos e eles dizem que não querem que os filhos aprendam a técnica porque vão ganhar 50 cêntimos à hora. Por outro lado, um cesto em empreita feito no Algarve custa 25€. Um potencial comprador vai à loja do chinês e vê cestos à venda por cinco. Se souber que o cesto dos 25€ demorou um dia a fazer e que é feito à mão por um artesão local, de forma sustentável, se calhar vai pensar duas vezes no que é que está a apoiar.”
Valorizar o conhecimento manual, mas também diferenciá-lo e passá-lo às gerações mais jovens é o objetivo da Passa ao Futuro, a associação sem fins lucrativos que as duas arquitetas registaram entretanto. “Os artesãos têm dificuldade em chegar ao mercado e sair do artesanato de pequena escala. Queremos educá-los, mas também educar os consumidores, fazendo por um lado peças contemporâneas para entrar no mercado dos colecionadores, por exemplo, e por outro um passaporte com a informação por trás de cada objeto”, diz Astrid. “Não é fácil definir-nos, porque não somos uma marca”, acrescenta Fatima. “No fundo somos um ativador, um instigador que põe diferentes partes em contacto. É por isso que preferimos dizer que estamos a promover os artesãos, e não salvar. Queremos uma ação positiva. Em vez de correr atrás do passado, queremos trazer algumas luzes para o futuro.”
Essa promoção tem sido feita de várias formas, desde residências em que convidam designers de renome a desenvolverem peças diretamente com os artesãos – como a que aconteceu na Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva para “reimaginar as artes decorativas”, da qual nasceram nove peças de edição limitada, incluindo um candeeiro feito em talha –, a workshops intensivos, como o summer camp de cestaria portuguesa realizado no Museu de Arte Popular no verão passado (local onde irão regressar para organizar a exposição Um Cento de Cestos – Uma tecnologia sustentável para o século xxi, programada para 2020). Outro modelo passa por desafiar designers de renome a selecionarem uma arte com que queiram trabalhar, arte essa que chega a estar organizada por estações do ano, “por causa das colheitas dos materiais”. Para uma instalação no novo restaurante da Esporão no Porto, por exemplo, o designer alemão Christian Haas escolheu a arte do baracejo trabalhada por Isabel Martins, na Malcata.
Certos projetos tocam diretamente na área do empreendedorismo, como o que a Passa ao Futuro está neste momento a desenvolver com a Câmara Municipal de Mértola, para repensar as mantas tradicionais da região. “Cada manta custa 700€, por isso o desafio também é tentar perceber como é que se pode pegar na técnica e torná-la comercialmente sustentável.” Neste caso, até planos de negócios serão feitos, numa parceria com estudantes da Universidade de Columbia, trazidos ao Alentejo.
Em três anos, a associação ultrapassou os dois mil artesãos certificados e atualmente trabalha com 12 materiais e conta com o apoio da UNESCO Cátedra, CEARTE e da fundação suíça Michelangelo Foundation, entre outros. “Queremos promover o conhecimento tácito, o conhecimento de uma vida e que se passa com as mãos”, conclui Fatima. “Temos países em que esta tradição já se perdeu, e aqui ela está ativa, está viva.”
Artigo publicado originalmente na revista Observador Lifestyle nº 6 – Especial 100% português (novembro de 2019).