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Morreu Rubem Fonseca, “um dos maiores escritores do Brasil”, segundo avançou o jornal brasileiro O Globo, notícia confirmada pelo Observador junto da Porto Editora, que, através da Sextante, publica os livros do autor de Minas Gerais em Portugal. A poucas semanas de completar 95 anos, o escritor sofreu, esta quarta-feira, um enfarte por volta da hora de almoço, no seu apartamento no Leblon, Rio de Janeiro. Foi levado para o hospital Samaritano, segundo o mesmo jornal, onde não resistiu.
Entre as obras que o tornaram num dos mais célebres autores de contos brasileiros da segunda metade do século XX, estão Feliz Ano Novo (1975), A Coleira do Cão (1963) ou O Cobrador (1979). O último livro de contos inéditos foi publicado no final de 2018, com o título Carne Crua. Em 2003, foi distinguido com o Prémio Camões.
Rubem Fosenca, ou Zé Rubem como era chamado pelos amigos, nasceu a 11 de maio de 1925, em Juiz de Fora, cidade do estado brasileiro de Minas Gerais. Formou-se em direito e construiu uma carreira de seis anos na polícia civil, já no Rio de Janeiro, como comissário e especialista em psicologia criminal. Embora tenha publicado o primeiro livro quando já tinha mais de 35 anos, Fonseca começou a escrever aos 17.
Portugal, 2012: a última viagem de Rubem Fonseca
Em contos e romances, sempre deixou apontamentos daquela que era a sua origem portuguesa. Filho de emigrantes transmontanos, aludiu a paisagens e iguarias. Em 2012, esteve em Portugal para receber o Prémio Literário Casino da Póvoa pela obra Bufo e Spallanzani, no mais importante festival literário português, o Correntes d’Escritas. Segundo, João Duarte Rodrigues, editor de Rubem Fonseca em Portugal desde 2010, foi a última viagem do autor para fora do Brasil.
Fonseca amava a língua portuguesa, uma língua que considerava “lindíssima”, capaz de “durar pela eternidade”, como disse em 2012, na Póvoa de Varzim, quando foi reconhecido com o prémio. Declamou Camões — “Busca amor novas artes, novo engenho” — e rematou com um grande “Viva a língua portuguesa!”.
Um escritor tem de ser obrigatoriamente louco”, declarou ainda na mesma cerimónia. Tem também de ser “alfabetizado, mas não precisa de ser muito”, porque “quem escreve tem de fazer o leitor sentir e ver, para poder entender”. Mas tem de ter “motivação, paciência” e “imaginação”, porque é preciso “inventar”, declarou o autor, quando recebeu o prémio no festival português.
“Quando o prémio foi anunciado, ele levantou-se e o que fez foi dizer um soneto de Camões. Foi muito emocionante. Ele tinha uma paixão grande pela poesia portuguesa”, recorda João Duarte Rodrigues ao Observador, referindo Maria Teresa Horta como uma das autoras da sua admiração.
“Um escritor tem de ser obrigatoriamente louco”, declarou ainda na mesma cerimónia. Tem também de ser “alfabetizado, mas não precisa de ser muito”, porque “quem escreve tem de fazer o leitor sentir e ver, para poder entender”. Mas tem de ter “motivação, paciência” e “imaginação”, porque é preciso “inventar”. “Flaubert sabia disso: porque é que ele passou cinco anos escrevendo aquele ‘livreco’ [Madame Bovary] de 200 páginas? Porque ele procurava le mot juste, a palavra certa, ele sabia que não existem sinónimos. A existência de sinónimos é ‘conversa mole p’ra boi’, ouviram?”, disse então Rubem Fonseca, saudado com gargalhadas e aplausos.
Na sua passagem por Lisboa, nesse mesmo ano, recebeu a Medalha de Mérito Municipal Grau Ouro. Afirmou, na altura, que “mais importante que esta grande honraria é o estar em Portugal”. “Em casa falávamos português, minha mãe só cozinhava comida portuguesa e a biblioteca do meu pai era só de autores portugueses”, disse ainda o autor. Foi nessa mesma biblioteca que, segundo contou, teve o primeiro contacto com escritores como Luís de Camões, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Guerra Junqueiro, o favorito de seu pai.
Num discurso de homenagem, António Costa, na altura Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, reconheceu ao autor brasileiro a capacidade de recorrer “às histórias e à realidade urbana para registar e ‘desocultar’ dramas numa construção feita de inteligência, crueza, oralidade e de um humor que nos desarma e nos estimula o sentido crítico”.
Em casa falávamos português, minha mãe só cozinhava comida portuguesa e a biblioteca do meu pai era só de autores portugueses”, disse Rubem Fonseca durante a sua passagem por Lisboa, em 2012.
Nessa mesma visita à capital, foi-lhe atribuída a Medalha de Mérito Cultural, atribuída pela então secretaria de Estado da Cultura. “Editar um homem assim é um dos grandes prazeres da edição e da minha vida junto dos livros. E depois, foi outro prazer conhecê-lo a ele”, recorda o editor, aludindo a essa mesma edição do festival. “Era um homem muitíssimo interessante. Algo reservado, mas um diseur excecional”, acrescenta.
“Rubem Fonseca é tão imprescindível em 2020 quanto era em 1963”
Rubem Fonseca estreou-se como autor publicado em 1963, com a coletânea de contos Os Prisioneiros. Detentor de um estilo que o crítico e historiador da literatura brasileira Alfredo Bosi chamou de “brutalismo”, os seus livros foram marcados “pela linguagem afiada e pela violência”, como descreve o jornal Folha de S. Paulo. Prosseguiu nos primeiros anos da sua carreira literária como contista. Seguiram-se A coleira do cão, Lúcia McCartney e, em 1973, O Caso Morel, o primeiro romance do escritor.
Dois anos depois, publica Feliz Ano Novo — “citado como referência obrigatória de quase todos os escritores surgidos nas últimas décadas”, como expôs o brasileiro Estadão, em dezembro de 2018. Com cinco contos e uma mão cheias daquelas que viriam a ser as narrativas e personagens tipo de Fonseca, o livro acabou por ser proibido pela ditadura, um ano após a publicação, por ser “contrário à moral e aos bons costumes”, segundo o auto lavrado pela Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça. O autor tentou levar o livro novamente para as livrarias, mas só em 1985, com a queda do regime, é que voltou a ser vendido.
O Cobrador, novo livro de contos, sai em 1979. Durante mais de uma década, Rubem Fonseca não viria a publicar nada neste registo literário. O romance A Grande Arte é publicado em 1983 e entra diretamente para a seleção de títulos essenciais na obra do escritor, que chegou a disputar tops de vendas com Jorge Amado. “A Grande Arte é um retrato extraordinário da realidade brasileira, de quem são os poderosos e de quem são os humildes”, resume o editor português. Em 2011, Fonseca encerrou a lista de romances e novelas com uma autobiografia. O título é José.
Editar um homem assim é um dos grandes prazeres da edição e da minha vida junto dos livros. E depois, foi outro prazer conhecê-lo a ele”, recorda o editor, aludindo a essa mesma edição do festival. “Era um homem muitíssimo interessante. Algo reservado, mas um diseur excecional”, afirma João Duarte Rodrigues.
Exemplo da influência norte-americana na produção literária brasileira, a escrita de Rubem Fonseca conservou vitalidade até ao fim, com o último livro, uma coletânea de contos, há cerca de um ano e meio. “O leitor encontra a mesma maestria na construção do ponto de vista, a mesma aguda ironia, a mesma limpidez de estilo das primeiras publicações, mas a serviço de histórias inusitadas, algumas aparentemente amenas, outras de uma violência estilizada, que, no entanto, no seu conjunto, acabam por compor um retrato profundamente crítico da humanidade”, assinalou Vera Figueiredo, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e especialista na obra de Fonseca, a propósito da publicação de Carne Crua.
Em 2018, o primeiro romance do escritor, “O Caso Morel”, foi adaptado a televisão por Suzana Amaral, que assinou o argumento com Patrícia Melo. Muitos dos seus contos deram origem a filmes e ‘seriados’, como o seu inspetor Mandrake, que o seu filho José Henrique Fonseca levou para a televisão brasileira. “Axilas”, a derradeira longa-metragem de José Fonseca e Costa, rodada em 2014, parte de um curto relato de Rubem Fonseca. E a ópera “O Jardim”, de Tiago Cabrita, estreada em 2018, no Palácio da Ajuda, em Lisboa, é inspirada no conto “Henri”, do escritor.
Em 2003, foi distinguido com o Prémio Camões, um dos muitos galardões que somou. Nessa ocasião, Mário Soares elogiou-lhe “a lucidez e a argúcia”, “a prosa muito ágil, direta e seca”. Da lista fazem parte seis Prémios Jabuti, entre 1969 e 2014, o principal galardão literário do país, atribuído pela Câmara Brasileira do Livro, e ainda o Prémio Machado de Assis, atribuído pela Academia Brasileira de Letras, entre outros. Dos mais de 30 títulos publicados por Fonseca, 19 são de contos. A sua obra encontra-se publicada em mais de uma dezena de línguas, na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos.
No início deste ano, quando o estado brasileiro da Rondónia, onde Jair Bolsonaro conseguira uma das maiores votações, tentou proibir 43 obras literárias nas escolas, e emitiu uma ordem para a sua recolha, a lista incluía 19 títulos de Rubem Fonseca, a par de autores como Nelson Rodrigues, Machado de Assis, Edgar Allan Poe ou Franz Kafka.
Rubem Fonseca marcou a literatura com narrativas que retratam a vida na grande cidade, sem hesitar perante situações de violência. Os temas policiais estão no centro das suas histórias, cruzando criminosos, prostitutas e um mundo marginal e obscuro.
Numa entrevista ao Estadão, o também escritor André de Leones afirmou que “Rubem Fonseca é tão imprescindível em 2020 quanto era em 1963, ano em que publicou seu livro de estreia, Os Prisioneiros”. “Seu trabalho como passeador noturno das nossas ruínas não se esgotou com o término da Ditadura Militar […] Pelo contrário, a brutalização que sua obra investiga só se adensou nas últimas décadas e, sobretudo, nos últimos anos. Seus contos e romances traduzem à perfeição a atmosfera asfixiante do nosso país falhado, enfermo e em processo de implosão”, indicou Leones.
Muito antes de se tornar o editor de Fonseca em Portugal, e apesar de se considerar um “leitor tardio”, João Duarte Rodrigues já estava ligado há muito à obra do autor brasileiro. “Conheci os contos ainda nos anos 80 e ainda participei numa edição de um romance dele pela Dom Quixote, acho que a primeira de Agosto [1990] em Portugal”, afirma o editor.
Seu trabalho como passeador noturno das nossas ruínas não se esgotou com o término da Ditadura Militar […] Pelo contrário, a brutalização que sua obra investiga só se adensou nas últimas décadas e, sobretudo, nos últimos anos. Seus contos e romances traduzem à perfeição a atmosfera asfixiante do nosso país falhado, enfermo e em processo de implosão”, afirmou o escritor brasileiro André de Leones ao Estadão.
“Ele deixou imensos discípulos no Brasil e muitos são jovens”, considera João Duarte Rodrigues. Do lado de cá do Atlântico, a Sextante publicou recentemente O Doente Molière, romance de 2000 inspirado numa teoria de fundamento verídico sobre o assassinato do dramaturgo francês. João garante que a chancela da Porto Editora vai continuar a publicar. Ao longos anos, os livros de Fonseca foram publicados em Portugal por várias editoras e chancelas — Contexto, Asa, D. Quixote, Edições 70 e Campo das Letras.
Figura esquiva, sempre preferiu o recato do quotidiano e as caminhas em que passava despercebido pela ruas do Rio de Janeiro, a cidade onde viveu a maior parte da vida, às entrevistas e sessões de autógrafos. O escritor recluso é e continuará a ser recordado pelo seu editor português — “Tenho uma grande saudade dele como pessoa, mas sabemos que os escritores não morrem. E quando são grandes ainda morrem menos”.
As reações à morte de Rubem Fonseca, “essa maravilha das letras do mundo”
Rubem Fonseca era um nome maior da literatura brasileira e a sua morte, aos 94 e sem anúncio, impactou o meio literário lusófono. “Desolado com a notícia da morte de Rubem Fonseca, essa maravilha das letras do mundo. Querido amigo, querido magnífico escritor que tanto me honrou, tanto me inspirou. Adeus, mestre. Obrigado por tudo”, escreveu Valter Hugo Mãe na sua página de Facebook, ao partilhar também uma fotografia sua ao lado de Fonseca.
Também o angolano José Eduardo Agualusa lhe dedicou uma mensagem nas redes sociais. “Rubem Fonseca foi importante para a minha formação enquanto escritor. Tenho todos os livros dele e continuarei a lê-lo, como sempre o leio quando preciso de me sentir inquieto para escrever. Escritores morrem quando deixam de ter leitores. Rubem continuará a ter leitores”, sublinhou Agualusa.
Escritores morrem quando deixam de ter leitores. Rubem continuará a ter leitores”, disse José Eduardo Agualusa sobre a morte do autor.
O jornalista, escritor e editor português Francisco José Viegas, que era também secretário de Estado da Cultura, aquando a última visita do escritor brasileiro a Portugal, em 2012, referiu-se a Fonseca como seu “grande mestre”. “Meu mestre, meu professor, meu grande mestre. Morreu Rubem Fonseca (1925-2020), um dos maiores ficcionistas de sempre da nossa língua. O autor de ‘A Grande Arte’, um dos livros dos livros. Meu mestre, a quem roubei tudo o que pude”, escreveu.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, também reagiu à morte do escritor, deixando esta quinta-feira uma mensagem de homenagem. “No dia em que dele nos despedimos, deixo uma palavra de homenagem ao observador atento de um outro Brasil, ao escritor desenvolto, ao mestre da língua concisa e precisa”, diz.
Na nota divulgada no portal da Presidência da República na Internet, o chefe de Estado refere ainda que “este filho de transmontanos emigrados também ganhou, um pouco tardiamente, lugar de destaque nas preferências dos portugueses e dos leitores lusófonos, tendo-lhe sido atribuído muito justamente o Prémio Camões em 2003”.
Artigo atualizado dia 16 de abril, às 10h56, com a homenagem de Marcelo Rebelo de Sousa