Mesmo que nunca tenham ouvido falar deles, já os ouviram. E mesmo que nunca os tenham ouvido diretamente, já os ouviram indiretamente – e esta é a introdução possível a “Can I kick it”, o mega-êxito dos A Tribe Called Quest, incluído em People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm, o disco de estreia que hoje comemora 30 anos de existência. Qualquer melómano reconhece imediatamente o sample por trás de “Can I kick it” – é “Walk on the wild side”, de Lou Reed. E todo o melómano devia conhecer de uma ponta à outra People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm que, juntamente com 3 Feet High and Rising, dos De La Soul, mudou não só o que se podia esperar de um disco de hip-hop como se tornou um clássico. Hoje, “Can I kick it” tem para cima de 134 milhões de escutas no Spotify — imaginem se não tivesse 30 anos.

Os americanos, que têm expressões para tudo, têm uma expressão para isto: “game changer” – e “game changers” é o que People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm e 3 Feet High and Rising foram. Ninguém esperava um par de discos assim: a moda, na época, era o gangsta rap, feito de beats simples, letras confrontacionais, histórias de venda de drogas e tiros e muito ego masculino.

Mas tanto People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm como 3 Feet High and Rising mostraram o oposto disto – discos de uma positividade imensa, meio desconexos, mas imensamente lúdicos, feitos de – no caso particular de People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm – dezenas de samples que iam desde Lou Reed ao jazz de Cannonball Adderley, passavam por Stevie Wonder, recuperavam os maravilhosos Rotary Connection ou lendas como Eugene McDaniels.

Como disse um dia um crítico, numa imagem feliz, estes discos estavam para os Public Enemy como a new wave estava para os Sex Pistols – da mesma forma que a new wave pegou na descoberta de uma linguagem crua como o punk e a tornou arte, People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm pegava na ideia simples de haver um beat e uma voz e a transformou numa obra de arte. Bastou adicionar um detalhe: samples extraordinariamente bem escolhidos, de um bom gosto tremendo, justapostos de uma forma inesperada, mas no lugar certo.

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[“Bonita Applebum”:]

Traduzindo: há 30 anos People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm era o futuro – não do hip-hop, mas da pop. Hoje é grande arte pop. Na altura isto não era óbvio, e o álbum – que só foi editado por insistência dos De La Soul junto às editoras – dividiu a crítica: a Rolling Stone deu-lhe apenas três estrelas e atacou as vozes, demasiado relaxadas, sem se aperceber que esse flow era exatamente o objetivo de Q-Tip e Phife Dawg, os MCs.

Aliás, quando os A Tribe Called Quest apareceram eram considerados os parentes pobres do movimento Native Tongues, que incluía ainda os Jungle Brothers e os De La Soul – projetos já estabelecidos, com culto, êxito e reverência crítica e entre os pares. O coletivo tinha uma ideia de hip-hop nos antípodas do gangsta-rap: queriam fazê-lo com consciência social, que falasse da vida dos negros, mas também de espiritualidade e sexo e falar sobre tudo isto com sentido de humor – e imaginavam uma música criada a partir de samples ecléticos, que unissem todos os tipos de música possível, resgatando o jazz, o funk, a soul, tudo que estivesse à disposição.

De La Soul. A revolução hip hop com flores, samples e bom humor

Quando People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm saiu, a respeitadíssima The Source quebrou uma regra interna e atribuiu-lhe 5 Mics, a nota mais alta possível, destacando “a produção sofisticada com sabor a jazz”. O mais caricato nesta história toda é que o disco fora feito anos antes, num quarto em Queens, com recurso a dois decks de cassetes e um botão de pause.

[“Can I Kick It”:]

Q-Tip, o principal produtor dos A Tribe Called Quest tinha 12 anos quando, em 1982, começou a brincar com o duplo leitor de cassetes do pai. Desenvolveu uma técnica arcaica que consistia em pôr em pause a primeira cassete no exato instante que queria samplar e depois carregar no play da primeira cassete e no rec da segunda ao mesmo tempo e pressionar o stop da segunda no exato instante em que o loop devia acabar. Há uns anos, numa entrevista, ele descreveu quão penoso era este processo: “Precisava de tentar umas cem vezes só para conseguir um compasso”.

Depois de acumular samples era preciso uni-los com precisão até criar um beat. E depois ainda era preciso criar os samples melódicos, posicioná-los, uni-los, justapo-los. Imaginem o tempo que não demorava criar simples uma faixa. Em auxílio de Q-Tip veio a coleção de vinis do seu pai – que era particularmente grande, especialmente no que tocava a jazz, do qual era um colecionador imparável. Foi desses discos, com pequenos snippets samplados até à exaustão nos dois decks, que saíram as fundações dos futuros instrumentais de People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm.

Como outros produtores que vieram a ser mais tarde reconhecidos e que começaram por um par de decks de cassetes, Q-Tip estava consciente das limitações do que tinha à sua disposição. É por norma nesta altura que o cosmos e o karma decidem entrar em acção e tornar um humano num eleito – por cosmos e karma entenda-se: os amigos, o acaso. Q-Tip contraiu amizade com Ali Shaheed Muhammad, que viria a tornar-se DJ e produtor dos A Tribe Called Quest. Muhammad tinha um tio que possuía um gravador de quatro pistas – possuía, mas deixou de possuir porque Muhammad e Q-Tip tomaram conta dele: “A primeira vez que vi aquele gravador foi provavelmente em 1985. Eu tinha 15 anos. E as duas primeiras canções que levei para tentar fazer no gravador foram ‘Ripe’ e ‘Bonita Applebum’”, contou anos mais tarde Tip.

[“I Left My Wallet in El Segundo:]

Cinco anos depois, “Bonita Applebum” foi um dos êxitos de People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm, tal como “I left my wallet in El Segundo” e o inevitável “Can I kick it”. Mas há tanto mais no disco: “Youthful expression” vive de uma linha de baixo super cool e um farfisa e o flow com mais pinta que possam imaginar; a batida de abertura de “Ham’n’eggs” é complementada por uma linha de baixo extraordinária, enquanto todos rapam à vez e em conjunto; e “After hours” é simplesmente uma festa de dança lenta e sensual.

People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm vendeu apenas meio milhão de discos nos EUA, mas os A Tribe Called Quest estavam lançados: ainda em 1990, Q-Tip participou no espantoso “Groove is in the Heart”, single dos Deee-Lite, que atingiu êxito universal. No ano seguinte, The Low End Theory, o segundo álbum dos A Tribe Called Quest, chegou ao milhão de vendas nos EUA.

Com um simples disco, os A Tribe Called Quest tinham mudado a imagem do rap: um rapper já não tinha de ser uma personalidade impositiva, um machão rapando sobre uma batida seca – podia ser um artista, relaxado, positivo, meticuloso artesão de beats e samples e rimas que davam vontade de dançar ao mesmo tempo que faziam pensar.