É o “inimigo público número um” da humanidade, segundo as palavras do diretor-geral da Organização Mundial de Saúde. Por todo o mundo, o novo coronavirus vai a caminho de já ter infetado perto de três milhões de pessoas, com um contador de vítimas mortais que continua a acelerar e a aproximar-se rapidamente das 200 mil. Mas com alguns países a debaterem-se também com as restrições e a planearem a construção de uma “nova normalidade”, uma nova questão começa a ganhar relevância: a existir, qual será o impacto de uma nova vaga de infetados? Sem certezas para o presente, a História dá-nos as lições de uma pandemia com 102 anos.
A crise provocada pela gripe espanhola de 1918 tem sido usada como exemplo de um vírus que ganhou dimensão global e que também não viu barreiras nem nacionalidades. Apesar de ter tido impacto durante dois anos, foi especialmente feroz na segunda vaga — três meses durante o outono do mesmo ano, que, como lembra o canal História, vivia ainda com os grandes movimentos das tropas de guerra.
Em Espanha, segundo recorda o El Español, o mês de outubro terá mesmo sido o mais agressivo de todos, tendo registado 45% das mortes em todo o mundo. Hoje, os historiadores apontam, no total, para um intervalo entre 160 a 260 mil de vítimas mortais causadas pela pneumónica só em Espanha, num cenário que fica marcado por um verão que fez acreditar que o vírus tinha praticamente desaparecido. Em todo o mundo, entre 1918 e 1920, terão morrido entre 50 e 100 milhões de pessoas.
Lições da pneumónica: o que fizeram as comunidades que escaparam ilesas à gripe de 1918
É necessário entender o ano de 1918 para acompanhar o fluxo desta doença, também conhecida como “pneumónica”. Ao contrário do que se acreditava no princípio, a guerra continuava quatro anos depois e não havia certezas quanto ao seu fim. O mundo assiste a um fluxo de tropas pelos oceanos e é desta forma que o vírus — ao contrário do que o nome indica — é transportado dos EUA para a Europa.
Um dos primeiros casos de gripe espanhola terá sido detetado em março, no estado do Kansas, numa instalação do exército norte-americano, por onde a doença se espalhou rapidamente. Até ao fim do mês, 38 soldados tinham morrido com pneumonia, provocada pelo vírus, e daí até à Europa bastou um passo. O movimento militar transportou consigo a doença para o outro lado do oceano, com os exércitos francês e britânico particularmente afetados. Em Espanha, em junho já eram 250 mil infetados.
No final do verão, os relatos na imprensa espanhola — a que mais destaque dava ao tema — de mortes pela pneumónica tinham diminuído consideravelmente. Os sintomas de uma primeira fase deixavam-se confundir com as de uma gripe sazonal — até se desenvolver em pneumonia. Contudo, no outono, de um lado e do outro do oceano Atlântico, os números de mortes dispararam.
Só no mês de outubro, nos Estados Unidos da América tinham morrido 195 mil pessoas e em Espanha, onde o vírus já se tinha propagado para uma grande parte da população, a taxa de mortalidade subira para os 3,8%. A diferença entre a primeira e a segunda vaga – mais brutal – surge acompanhada de uma mutação do vírus, que o tornou mais letal e devastador. Um gráfico do Centro para o Controlo e Prevenção e Doenças (CDC) mostra como evoluiu a pandemia nos EUA – um comportamento replicado noutros países.
Em Espanha, explica o El Español — que recorre a um livro do historiador José Luis Betran —, o número de mortes agravou-se com o decorrer de duas festividades religiosas. Entre setembro e novembro, chegaram ao país milhares de pessoas retornadas das colheitas em França, além de milhares de repatriados portugueses que voltavam dos cenários de guerra. De norte a sul de Portugal, iriam morrer da doença num total de 50 a 70 mil pessoas.
Por essa altura, a nova composição da gripe espanhola permitia que fosse agora mais letal não só para os idosos, mas também para os jovens e adultos saudáveis. No entanto, a combinação entre o desconhecimento científico da doença, as fracas medidas impostas pelas autoridades públicas e os movimentos militares — onde seria difícil impor o distanciamento físico — tornaram-na “a mãe de todas as epidemias modernas”. A chave para compreender a explosão de casos passa inevitavelmente pela guerra, pelo destacamento de médicos e enfermeiros ao serviço dos exércitos e pela própria gestão da crise: o uso de máscaras não seria medida suficiente, se a resposta dos governos para lidar com a doença tivesse chegado tarde. Em França e Itália, a pneumónica deixou entre 400 e 600 mil mortos; e nos EUA entre 500 e 675 mil.
Devemos esperar uma segunda vaga de Covid? “É uma certeza”
Como explicou a diretora-geral da Saúde, Graça Feitas, à agência Lusa, “as pandemias não são apenas doenças”. “São fenómenos sociais e económicos muito complexos” e são essas componentes que tornam a pandemia do coronavírus diferente da gripe espanhola. Em 2020 não se falam em trincheiras apinhadas de soldados e há infraestruturas de saúde e controlo epidémico mais robustas. Contudo, um século depois, a questão de uma segunda vaga repete-se.
Diferentes países preparam-se para deixar para trás semanas de isolamento, com medidas progressivas de reabertura e regresso à “normalidade”. Maio poderá ser o mês do primeiro passo para o teste, mas as atenções estão viradas para o próximo inverno, estação do ano mais propícia à sobrevivência dos vírus. O alerta já tinha sido deixado por Walter Ricciardi, membro italiano do comité-executivo da OMS, em entrevista ao jornal Ilcafeonline: “Mais do que uma hipótese, é uma certeza. Até termos uma vacina, haverá novas ondas, ou, esperamos, muitos pequenos surtos epidémicos que serão contidos”.
Até lá, grandes e pequenos laboratórios procuram dar passos para encontrar a vacina. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, no início do mês havia 70 projetos de vacina para o coronavírus, das quais três já estão a testar em seres humanos. Mas por muito entusiasmo que haja ao redor dos passos dados, os especialistas preveem que só a partir do verão de 2021 poderá haver uma vacina acessível às massas. Pelo caminho, é necessário que as vacinas passem por mais duas fases de teste, por processos de regulamentação e de produção em larga escala.
Há 70 vacinas em desenvolvimento, três a serem testadas em humanos, avança a OMS