Na quinta-feira de manhã, quando as autoridades foram chamadas à Rua D. Jerónimo de Ataíde na Atouguia da Baleia, em Peniche, a história de Valentina Fonseca resumia-se a um caso de desaparecimento. Mas, três dias depois, a menina de nove anos foi encontrada sem vida numa zona de pinhal da Serra d’El-Rei com o corpo coberto pelas ramagens de arbustos. Por essa altura, o pai e a madrasta da criança já estavam detidos.
As buscas organizadas pela Polícia Judiciária (PJ) de Leiria, a Guarda Nacional Republicana (GNR) das Caldas da Rainha e os bombeiros de Peniche e várias outras corporações que a eles se juntaram, envolveram a colaboração de 600 elementos. Quando o corpo da criança foi encontrado, já tinha sido procurada, por vezes mais que uma vez num mesmo local, num raio de 3,5 quilómetros a partir da casa onde Valentina residia neste momento com o pai, a madrasta e outros meios-irmãos. Mas o cadáver veio a ser encontrado fora desse perímetro, a cerca cinco quilómetros da habitação, junto a um pinhal, apenas coberto por uns ramos de arbustos.
Em conferência de imprensa, Fernando Jordão, coordenador da PJ de Leiria, não quis adiantar se a morte de Valentina e a localização do corpo foram indicadas pelo pai da criança ou pela madrasta, de 32 e 38 anos. Confirmou, no entanto, que a detenção dos dois resultou de uma investigação que encontrou “indícios de condutas criminosas”.
“Começámos pela investigação de um desaparecimento e essa investigação levou-nos ao cometimento por dois autores que estão fortemente indiciados pelos crimes de homicídio e ocultação de cadáver, entre outros. As duas pessoas estão fortemente ligadas à criança desaparecida, no meio familiar. Agora vai apurar-se a sua responsabilidade”, descreveu o coordenador da PJ de Leiria.
Esses indícios continuam por revelar . “Não estamos ainda na altura de estar aqui a referir quais são”, mas “são relativos à análise e correlação da informação que a polícia encontrou e que levaram à certeza, digamos, dos indícios que temos e que nos permitem afirmar uma detenção”, justificou Fernando Jordão.
E continuou: “A investigação resulta de uma permanente troca de informação entre os órgãos de polícia criminal e da análise dessa informação em tempo real. Isso permitiu-nos estabelecer as estratégias que levaram ao desfecho desta investigação. Esta correlação foi sobretudo aquela que nos permitiu, nas entrevistas e inquirições às pessoas, fazer a ligação entre todos os dados em cima da mesa no sentido de colocarmos todas as hipóteses possíveis“.
Corpo de Valentina “estava tapado por arbustos”, revelou inspetor da PJ
A linha do tempo do caso, ponto a ponto
Valentina Fonseca terá morrido ao fim do dia de quarta-feira na casa do pai na Atouguia da Baleia, em Peniche. Os contornos do crime ainda não foram revelados pelas autoridades, mas já este domingo em conferência de imprensa, a PJ disse ter sinais de que a morte não se tratou de um acidente. Fernando Jordão, o responsável da Judiciária de Leiria, também acrescentou que a polícia já tem teorias sobre o que terá motivado o crime: “Terá sido por questões internas do funcionamento da família”, mas “concretamente ainda não podemos revelar esta informação”. Há duas teorias, uma de que terá ocorrido um acidente no banho; a outra de que a menina terá sido asfixiada.
Na noite de quarta-feira, o corpo de Valentina foi retirado da habitação onde o crime terá ocorrido e transportado “possivelmente de carro” para uma zona de pinhal na Serra d’El-Rei. O cadáver foi encontrado a cerca de cinco quilómetros da Rua D. Jerónimo de Ataíde, depositado numa zona de pinhal e tapado por ramos de arbustos. A PJ não revelou se a criança estava vestida com as roupas com que o pai reportou o desaparecimento da menina.
Às 08h30 da manhã de quinta-feira, o pai da criança, Sandro Bernardo, dirigiu-se à GNR das Caldas da Rainha para reportar o desaparecimento da filha de nove anos. No primeiro depoimento, afirmou que a família foi dormir por volta das 23h00 da noite anterior mas que, à uma da manhã, foi aconchegar os lençóis à criança antes de voltar para a cama. Às 08h00 da manhã seguinte, quando regressou ao quarto de Valentina, não a encontrou e deu-a como desaparecida às autoridades. No entanto, a investigação indica que, por esta altura, a menina já estaria morta há algum tempo e o seu corpo fora de casa.
Criança desaparecida encontrada sem vida. “Pais que fazem uma coisa destas não têm perdão”
Ainda na quinta-feira, a GNR e os bombeiros iniciaram as buscas por Valentina Fonseca. Vários civis, incluindo grupos de escuteiros, participam nas ações que duraram até este domingo. As possíveis pistas chegavam “minuto a minuto”, descreveu a PJ, embora nem todas se tivessem revelado úteis. Sandro Bernardo e a madrasta não terão participado nas buscas enquanto voluntários em momento algum, indicou o capitão Diogo Morgado, da GNR das Caldas da Rainha. As buscas prosseguiram até esta manhã. O pai foi por algumas vezes ao posto de operações para “obter informações sobre a atividade, sobre o que se estava a fazer”. Deu “pistas” que foram recolhidas e analisadas, mas as autoridades não revelaram se criaram ruído na investigação.
Na sexta-feira de manhã, as autoridades entraram na casa de Valentina Fonseca para realizarem buscas no local onde a menina tinha sido avistada pela última vez. Nesta altura, a polícia ainda estava a investigar um caso de desaparecimento, não de homicídio, confirmou a PJ na conferência de imprensa. Mas não desvendou se foi lá que encontrou pela primeira vez sinais de um crime: “Tudo é importante no exame ao local, claro que sim. Claro que é importante recolher os vestígios que possam de algum modo indiciar o que aconteceu”, limitou-se a dizer o responsável da PJ.
Sandro Bernardo e a Márcia Bernardo, pai e madrasta da criança desaparecida, foram detidos este domingo a meio da manhã por suspeitas dos crimes de homicídio e ocultação de cadáver. Terão passado a noite toda e o início da manhã no Departamento de Investigação Criminal de Leiria a serem interrogados. O pai terá acabado por confessar onde estava o corpo da criança, mas não que a tinha matado.
Como encontrar uma criança em plena crise sanitária
Mais de 600 elementos, incluindo civis e escuteiros, juntaram-se em Atouguia da Baleia para procurar Valentina Fonseca. De acordo com o capitão da GNR Diogo Morgado, o efetivo era composto pelo posto da GNR em Peniche, o destacamento de intervenção de Leiria, grupo de intervenção cinotécnica de Lisboa, uma equipa das Aeronaves Remotamente Pilotadas (drones, para as buscas noturnas), várias corporações de bombeiros e a Proteção Civil.
Alguns civis juntaram-se voluntariamente às buscas, mas tiveram de ser incluídos em equipas para que não comprometessem os meios de prova que viessem a ser encontrados. Sempre que se identificasse um grupo organizado e independente que pudesse colidir com as buscas das autoridades, esses voluntários eram enquadrados com forças policiais no local.
Desde o momento em que a criança foi dada como desaparecida até à manhã deste domingo, as unidades percorreram uma área de quase quatro mil hectares mais do que uma vez. Mas na altura em que o corpo de Valentina foi encontrado, as buscas ainda não tinham chegado ao local onde tinha sido depositado, explicou o capitão da GNR: “Tínhamos percorrido uma área num raio de 3,5 quilómetros. Ainda não teríamos chegado a esta zona”.
De acordo com Diogo Morgado, as buscas foram alargadas em espiral de acordo com as características do caso e da pessoa desaparecida: “Neste tipo de teatro de operações, o nosso principal objetivo é analisar o caso em concreto — se será uma pessoa idosa ou um menor — e adaptar consoante as informações que nós temos”.
Mas as informações eram escassas, por isso as autoridades decidiram começar as buscas pelas proximidades da casa onde a criança tinha sido vista pela última vez. Após explorada essa área, o raio foi alargando, sem nunca ter alcançado a área onde o corpo foi encontrado. O Observador apurou junto de fonte da PJ que terá sido o próprio suspeito a indicar o local onde estava o corpo, embora sem assumir a internção de matar a menina.
As medidas de contenção impostas pela pandemia da Covid-19 obrigaram a uma reestruturação da forma como as equipas foram organizadas no terreno, confirmou o capitão da GNR das Caldas da Rainha. O distanciamento aconselhado pelas autoridades de saúde não foram cumpridos em todos os momentos pelos agentes envolvidos nas buscas, nem obedeceram ao uso de máscara. A missão de encontrar Valentina era a mais preponderante.
Em conferência de imprensa, Diogo Morgado garante que a crise de saúde pública não atrapalhou a investigação em si porque “não atrasou de modo algum as buscas efetuadas”:
“O único constrangimento que eu posso apontar aqui é foi a disponibilização dos meios, ou a concentração dos meios, de forma a receber indicações para atribuir novos setores de busca. Isso foi facilmente contornado a partir do momento que definimos chefes de equipa a quem eram transmitidas mensagens para evitar a aglomeração de pessoas”.
Apesar dos esforços pelas buscas por Valentina estar concentrado naquela freguesia de Peniche, o caso mereceu a atenção das autoridades em todo o país. José Rodrigues, comandante dos bombeiros de Peniche, contou que “o envolvimento foi total, não só na zona restrita dos concelhos limítrofes”: “Tivemos telefonemas de colegas de corpos de bombeiros a disponibilizar meios desde o Porto a Elvas e Santiago do Cacém”.
Nem todos esses meios foram efetivamente utilizados. José Rodrigues explicou que um excesso de concentração de agentes ou de tecnologia no local pode comprometer os indícios de prova e as linhas de investigação. “Não foram empenhados mais meios neste teatro de operações, em vez de melhorar podíamos estar a piorar as atividades no teatro de operações”, concluiu.
Apesar de Valentina já ter sido encontrada sem vida a investigação prossegue. O cadáver será autopsiado para descobrir a causa da morte e tal será fundamental para perceber como morreu e se foi ou não vítima de um acidente, como parecem sugerir as duas teses avançadas.
As autoridades continuam e procurar compreender as motivações do crime, os dois principais suspeitos, pai e madrasta, participaram numa reconstituição do crime no terreno e, já esta segunda-feira, serão interrogados por um juiz de instrução no Tribunal de Instrução Criminal de Leiria.