A pandemia de Covid-19, que levou à suspensão generalizada do futebol, e à sua retoma à porta fechada, vai levar a “uma reflexão no sentido de recentrar a posição do adepto”, explica à Lusa o antropólogo Daniel Seabra.

“A pandemia vai permitir uma reflexão no sentido de recentrar a posição do adepto. A pandemia mostra que os adeptos são absolutamente essenciais, porque são os consumidores do futebol. E o futebol vai começar a ter só adeptos televisivos, mas isso… os adeptos podem ver só pela televisão, mas se não houver consumidores, adeptos que querem ver o futebol, o futebol perde-se enquanto valor, enquanto atividade orientada para o espetáculo e para o negócio”, sustenta.

Entre os adeptos que acaba por seguir em redes sociais ou outros espaços via Internet, impedido que está do contacto direto, tem encontrado “sobretudo dois perfis” de pensamento sobre a atual pandemia e seu impacto no futebol, nomeadamente no regresso, à porta fechada, da I Liga, a partir de 4 de junho.

De um lado, há quem reflita “acerca da importância do futebol nas suas vidas”, e como este “não é assim tão importante“, e, do outro, existe um grupo que tem “saudades do estádio, de estar com os amigos no estádio e apoiar o clube em conjunto“.

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Para o antropólogo, que desde 1992 investiga o comportamento de adeptos e claques de futebol – um trabalho plasmado no livro “Claques de Futebol: O Teatro das Nossas Realidades” –, a pandemia torna claro que “o futebol só sobrevive enquanto negócio se houver adeptos que o consomem”, não só “pelo espetáculo”, mas por os próprios clubes fazerem parte de uma identidade, geográfica e não só.

No lado do negócio, a pandemia veio também “deixar a nu” “uma situação de sobrecapitalização” do jogo e das suas instituições, provada que está “a importância enquanto fenómeno económico”, do qual dependem “muitas pessoas, direta e indiretamente”.

Dos jogadores, que viram os salários reduzidos em vários casos, à comunicação social especializada e aos negócios que exploram este mercado, como a venda ambulante em torno dos estádios, a paragem faz-se sentir no campo económico de várias formas.

Ainda assim, “quem confere valor ao futebol são os adeptos“, sustenta Daniel Seabra, que vê muitos clubes a viverem “acima das suas possibilidades”, com antecipação de receitas, capitais próprios negativos e outros mecanismos.

Fica evidente que “quando o espetáculo para, param as receitas, não há quem consuma”, e a pandemia deve, então, ajudar a recentrar a maior importância nos adeptos “que vão aos estádios, e não aos interesses televisivos”.

“O debate [que se gerou] mostra que o regresso do futebol não é pacífico, mas toda a dimensão comercial e da produção do espetáculo faz obviamente pressão, porque se assim não for está em causa a própria sobrevivência do espetáculo enquanto atividade profissional, de forma direta e indireta”, acrescenta.

Coloca em causa a sobrevivência de uma indústria. O futebol, enquanto jogo, é uma atividade essencial, mas também um fenómeno social total com uma vertente económica, e, em muitos casos, tem também uma vertente ritual e religiosa, e as pessoas sentem-se privadas desse ritual”, considera.

O antropólogo vê os adeptos “muito divididos”, com alguns a considerarem que, sem público nas bancadas, “o futebol não tem sentido”, pela sua “dimensão participativa”. “Ninguém olha para o futebol como olha para uma ópera. As pessoas interferem, no estádio, com a forma como decorre o jogo”, explica, lembrando os resultados por norma mais favoráveis às equipas da casa do que aos visitantes.

Os laços sociais criados em torno do jogo, das amizades no estádio às claques e ao convívio em cafés, por exemplo, “não estão ameaçados”, antes “perturbados no curto prazo”, e Daniel Seabra alerta que a própria componente emocional do futebol torna difícil para os adeptos respeitar “as regras de distanciamento social” se surgisse a possibilidade de reabrir ao público.

“O futebol é uma comunidade imaginada. Milhares de pessoas, cada uma com a sua história individual e percursos de vida, com profissões diferentes, estão durante 90 minutos, um pouco mais, […], numa unidade de espaço que é o estádio, e numa unidade de ação, que é o que o futebol nos propõe enquanto jogo. É um contexto emotivo e de forte identificação. As pessoas projetam no clube uma ânsia de vitória que muitas vezes lhes é negada na sociedade”, aponta.

Por essa razão, e porque as pessoas sentem “que a vitória também é delas”, numa “procura de uma glória que se reflete em nós”, tornar-se-ia difícil manter “o controlo emocional” numa bancada.

Ainda assim, “o futebol não ocupa a vida das pessoas de igual forma”. “Para membros de uma claque, é central. Para alguns, não tenho dúvidas de que estes dias foram difíceis. Outros terão descoberto que o futebol não é assim tão importante. Há muitas formas de ser adepto”, conclui.