O Vaticano ofereceu-se para ajudar a ultrapassar a crise política em Timor-Leste, através de uma mediação com os líderes nacionais, mas pelo menos um deles, Xanana Gusmão, recusou esse diálogo, confirmou a Lusa.
O ministro dos Negócios Estrangeiros timorense, Dionísio Babo, confirmou à Lusa a oferta da mediação, numa carta da Santa Sé que nomeava o núncio apostólico em Díli para liderar esse processo de diálogo com os principais líderes do país.
“Recebi essa comunicação, que reencaminhei para os líderes nacionais”, disse à Lusa Dionísio Babo, escusando-se a tecer mais comentários sobre o conteúdo da carta ou sobre os líderes a quem a missiva foi reencaminhada.
Um dos líderes contactados foi Xanana Gusmão, presidente do Congresso Nacional da Reconstrução Timorense (CNRT), segundo partido do país, que, segundo a resposta que a Lusa teve acesso, rejeitou a oferta, considerando que o problema do país não é de cariz individual, mas de sucessivos “atropelos” constitucionais.
Na carta, endereçada ao núncio apostólico em Díli, Marco Sprizzi, Xanana Gusmão responde à “disponibilidade de mediação” expressa na missiva da Santa Sé, datada de 21 de maio, defendendo que a melhor solução para Timor-Leste “só poderá vir de eleições antecipadas”.
“Peço imensas desculpas, venerando núncio, mas não estou em condições, tanto políticas como psicológicas, de participar em diálogos deste tipo, porque não aceitarei ser fraco demais para fazer cedências, contrárias aos princípios e objetivos do meu partido, pela defesa intransigente do Estado de direito democrático”, escreve.
Xanana Gusmão manifesta “surpresa” pela oferta de mediação e diz-se “comovido” pela vontade do Papa Francisco de indicar Sprizzi para “esta difícil, mas nobre missão”.
Porém, sustenta, a crise deve-se não a discrepâncias individuais, mas ao que classifica de violações da Constituição pelo atual chefe de Estado, Francisco Guterres Lu-Olo, e a “atropelos” na gestão do atual primeiro-ministro, Taur Matan Ruak.
“Pode parecer que o problema que existe tem as suas raízes em discórdias individuais e, por isso, gostaria de esclarecer vossa reverência que teria sido muito fácil a ‘solução desse conflito’ se as bases fossem aquelas”, escreve Xanana Gusmão.
O “imbróglio” do atual problema, escreve, “é mais do que isso”, tratando-se de uma “manifestação clara e persistente desde 2018 de violação da Constituição e das leis pelo chefe de Estado, que é apenas um objeto usado pelo seu próprio partido político, a fim de impor uma ditadura partidária neste jovem Estado”.
“Por outro lado, pelo chefe do Governo [Taur Matan Ruak] um desejo incontrolável de atropelamento constante às normas constitucionais e legais quanto ao sistema de gestão financeira do património do Estado”, escreve.
Timor-Leste vive desde 2017 uma prolongada crise política que tem envolvido a Presidência da República, dois Governos, o Parlamento Nacional e os partidos políticos, com flutuantes alianças políticas a criarem várias maiorias parlamentares.
A crise começa depois da formação do Governo minoritário liderado pela Fretilin, que venceu por margem mínima as eleições de 2017, tendo o chumbo do programa do Governo por uma maioria na oposição — CNRT, PLP e KHUNTO – levado à dissolução do parlamento e a eleições antecipadas em 2018.
As antecipadas foram ganhas com maioria absoluta pela Aliança de Mudança para o Progresso (AMP), uma coligação destes três partidos, mas o Presidente da República, Francisco Guterres Lu-Olo — que é também presidente da Fretilin — não deu posse a cerca de uma dezena de membros indigitados pelo Governo, a maioria do CNRT.
Isso provocou tensão no seio da coligação, que foi crescendo até ao chumbo da proposta de Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2020, no início deste ano, com as abstenções e votos contra dos deputados do CNRT.
Esse facto levou o primeiro-ministro, Taur Matan Ruak, a demitir-se do cargo, sem que o Presidente se tenha pronunciado durante dois meses sobre o pedido, aceitando depois a retirada do pedido do chefe do Governo feita devido à crise da pandemia de covid-19.
Paralelamente o Presidente da República iniciou uma ronda de diálogos, entre outros, com os partidos políticos, depois da qual nasceu uma nova aliança maioritária de seis partidos, liderada pelo CNRT, a que o chefe de Estado nunca deu resposta.
Do outro lado a Fretilin, maior partido no parlamento, anunciou uma plataforma de entendimento com o PLP, para apoio ao Governo a que se juntou, depois o KHUNTO que abandonou a aliança com o CNRT.
O CNRT anunciou a saída formal dos membros indigitados pelo partido e que ainda estão no Governo, tendo novos membros propostos pela Fretilin sido indigitados para preencher alguns dos cargos vagos.
As tensões políticas eclodiram esta semana no parlamento nacional com a nova maioria (Fretilin, PLP e KHUNTO) a realizar um plenário para destituir o presidente do parlamento, Arão Noé Amaral (CNRT) e para eleger o seu sucessor, Aniceto Guterres Lopes (Fretilin).
Os votos, que o CNRT considera ilegais, decorreram depois de incidentes sem precedentes no parlamento com empurrões, gritos, protestos e até agressões, com os dois blocos partidários a apresentarem queixas no Ministério Público e petições ao Tribunal de Recurso.