Entre os nomeados para o International Booker Prize, há um livro escrito em alemão. O seu autor, Daniel Kehlmann, ficou conhecido em 2006, quando o seu quarto romance, Die Vermessung der Welt, foi traduzido para inglês. Measuring the World é uma recriação das vidas de duas figuras importantes do Iluminismo alemão — o naturalista e explorador Alexander von Humboldt e o matemático e físico Carl Friedrich Gauss — que, no final do século XVIII, tentaram medir o mundo. O novo romance de Kehlmann, publicado em 2017 na Alemanha e este ano no Reino Unido pela editora Riverrun, também se baseia em factos e figuras históricas, mas a sua personagem principal é tão escorregadia que a verdade é constantemente tocada pela magia.
Tyll é a história de Tyll Ulenspiegel, uma figura que fez a sua primeira aparição literária num folheto impresso no século XVI em Estrasburgo, mas que terá origens no folclore germânico. Segundo este folheto, Tyll teria nascido em Kneitlingen, perto de Brunsvique, por volta do ano 1300. Uma espécie de mendigo, durante a sua vida, viajou pelo Sacro Império Romano-Germânico e também por Itália, pregando partidas. Terá morrido em Mölln, perto de Hamburgo, onde hoje existe uma estátua em sua honra, de Peste Negra, em 1350.
Tyll foi mais tarde recuperado pela literatura satírica alemã do século XVIII, ganhando verdadeira fama no século XIX, quando começou a conquistar outras domínios artísticos. Na música, Richard Strauss dedicou-lhe um poema sinfónico, Till Eulenspiegels lustige Streiche (que se pode traduzir por “As partidas alegres de Till Eulenspiegel”), e Emil von Reznicek escreveu uma ópera em sua honra, Till Eulenspiegel; no cinema, a primeira adaptação das suas aventuras foi feita em 1956 e a mais recente em 2004. Em outubro do ano passado, a Netflix anunciou que ia produzir uma adaptação do romance de Kehlmann, com guião de Baran bo Odar e Jantje Friese, criadores da série “Dark”, prova de que a história de Tyll continua a despertar o interesse ainda no século XXI.
À semelhança de cada um destes artistas, Kehlmann fez a sua própria interpretação da história do folheto, que diz que Tyll Ulenspiegel viveu durante a primeira metade do século XIV. Em Tyll, o escritor alemão colocou-o mais à frente no tempo, em pela Guerra dos Trinta Anos, um conflito que dominou grande parte da primeira metade do século XVII e que teve o seu epicentro na região da atual Alemanha, embora tenha envolvido várias nações europeias, como os reinos da Suécia e França. Ainda que raramente recordada, a Guerra dos Trinta Anos, que começou por opor protestantes e católicos dentro do fragmentado Sacro Império Romano-Germânico, teve um impacto tremendo na paisagem europeia — estima-se que tenha provocado a morte de mais de oito milhões de pessoas, estabelecendo-a como um dos conflitos mais sangrentos da história da humanidade.
Quando Tyll começa, a guerra ainda não existe, mas a violência e o fanatismo que a irão marcar já são uma realidade. A morte está presente logo nos primeiros capítulos, quando, por exemplo, o jovem Tyll, que vivia com os pais numa pequena aldeia alemã, é obrigado a passar a noite sozinho na floresta, habitada por espíritos, bruxas e o próprio diabo; ou quando o seu pai, Claus Ulenspiegel, um moleiro que sonhava em descobrir os segredos do universo com a ajuda de um grande e pesado livro que não conseguia ler, é preso, torturado e enforcado pelos inquisidores jesuítas, que o acusam de feitiçaria perante um grupo de testemunhas forçadas. É por causa da condenação do pai que Tyll é obrigado a abandonar a sua aldeia, a juntar-se às gentes da estrada e a tornar-se saltimbanco (também corria o risco de ser executado), iniciando uma longa viagem que o leva aos quatro cantos do Império, aos meios mais ricos e aos cenários mais desoladores.
O julgamento de Claus é apenas uma de várias piscadelas de olho ao fanatismo religioso de uma guerra e de uma época que coincide com o pico da caça às bruxas na Europa. Quem reinava nesta altura em Inglaterra era James I, um famoso caçador de bruxas e uma figura que faz também a sua aparição em Tyll. Esta acontece pelo seu parentesco com os reis da Boémia (a rainha, Elizabeth, era sua filha), mas também pela sua ligação a Oswald Tesimond, o jesuíta responsável pela condenação do moleiro. Décadas antes, em 1605, Tesimond esteve envolvido num atentado levado a cabo pelas forças católicas contra o monarca protestante, que ficou conhecido como a “Conspiração da Pólvora”. O plano era fazer explodir o parlamento com 36 barris de pólvora e matar o rei, mas a conspiração foi descoberta a tempo e os principais responsáveis detidos. Tesimond fugiu de Inglaterra.
[A Orquestra filarmónica de Berlim a tocar a peça Till Eulenspiegel, de Strauss:]
O riso contra a morte
A carreira de Tyll é construída num cenário de guerra, mas o bobo nunca se confunde com ela. A sua profissão e a fama que conquista por causa dela levam-no a atravessar uma Europa em ruínas e a aproximar-se perigosamente da fome e da doença, mas tudo isso lhe parece passar ao lado — quando a situação não lhe agrada, desaparece sem dar explicações, reaparecendo depois num outro lugar assustando e inquietando, como um mago poderoso ou uma aparição fantasmagórica que não pertence a este mundo; quando encontra a morte, ri-se dela, goza com ela. Senhor do Ar (uma das suas habilidades é caminhar sobre uma corda), trapaceiro, malabarista e bobo da corte, Tyll Ulenspiegel é uma personagem fugidia que parece ter o dom de atravessar as situações mais adversas sem ser tocado por elas.
A estrutura narrativa do romance de Kehlmann é um espelho deste Tyll que sem contornos muito definidos. Vai andando para trás e para a frente, revelando diferentes personagens e intrigas políticas, como num ato de magia. Este vai e vem dá a ideia de m diálogo constante entre vários tempos — entre o tempo em que se passa o romance, o da Guerra dos Trinta Anos; o tempo antigo e pagão, dos feitiços e magias; e o tempo moderno, com a sua sede de liberdade e individualidade. De algum modo, Tyll parece reunir em si todos estes períodos — é um indivíduo do seu tempo, sim, um saltimbanco transformado pela magia da floresta e dos livros do seu pai, mas a sua personalidade é tão insólita que parece apenas encaixar no século XXI. É fácil acreditar que se confundiria mais facilmente com a confusão dos tempos modernos do que com o fumo dos tiros de canhão de um antigo campo de batalha.
Esta constante movimentação faz com que, no início, Tyll se assemelhe a uma manta de retalhos, composta por diferentes pedaços de história e pontos de vista. No entanto, à medida que avança, torna-se evidente que todas estas figuras compõem um mesmo tecido e estão ligadas a partir de intrincada teia que parte de um ponto em comum, o misterioso bobo. É esse o caso de Tesimond, o jesuíta que começa por surgir no papel de inquisidor e que é depois apresentado como um dos responsáveis por um plano que pretendia assassinar o pai de Elizabeth Stuart, rainha da Boémia e empregadora de Tyll. Esta é a maneira de Kehlmann brincar com cronologias, ao mesmo tempo que mistura figuras históricas e inventadas. Isto cria contradições, e às vezes é difícil perceber de que lado está a verdade. É, por exemplo, impossível chegar ao fim da história a saber com certeza quem é que assassinou Pirmin, o saltimbanco com quem Tyll e Nele aprenderam tudo o que sabe porque ambos dizem ser responsáveis pela sua morte.
Continuar sempre a percorrer a corda
Elizabeth Stuart é um outro exemplo da intrincada teia de ligações e conhecimentos que compõem Tyll. A filha de James I começa por ser apresentada como a rainha da Boémia, cuja a complexa situação política deu em parte origem à Guerra dos Trinta Anos. O seu marido, Friedrich V, ganhou a alcunha de “Rei do Inverno”, por ter governado durante pouco mais de um ano antes de ser obrigado a abdicar, em 1620. Foi a “pequena Lizzie” que ofereceu a Tyll a primeira oportunidade de trabalhar num castelo (uma corte tinha de ter um bobo) e é por isso que a “Rainha do Inverno” faz a sua aparição no romance de Kehlmann.
Este bobo foi com ela para o exílio e foi ele que enterrou o seu marido, que morreu precocemente de peste enquanto tentava convencer os suecos a apoiarem a sua causa. Depois de Tyll desaparecer, levando consigo o burro de Friedrich que jurou ensinar a falar, Origenes, os seus caminhos voltam a encontrar-se uma vez mais, na reta final das suas histórias e nas últimas páginas do livro.
Na varanda de uma residência em Osnabrück, onde tenta jogar as cartadas políticas que lhe restam, a rainha oferece a Tyll uma velhice confortável, com uma “sopa diária”, um “cobertor grosso” e uns “chinelos quentes” até ao fim dos seus dias. “Em honra dos velhos tempos.” O bobo recusa. Mesmo perante as maiores dificuldades, Tyll nunca há-de desistir de tentar caminhar sobre a corda, como nos primeiros tempos na aldeia dos seus pais. A sua liberdade vale mais do que uma sopa quente. Essa é umas razões pelas quais o bobo é uma personagem tão interessante — é uma contradição dentro do seu tempo. Libertário, apátrida e irreligioso, vive numa época marcada pela guerra, pela fome e onde os destinos de vários milhares de europeus estão nas mãos de intriguistas políticos e da censura religiosa. O seu apelo pela liberdade é um dos mais fortes do livro.
No final do livro, o bobo volta a dissipar-se — quando Elizabeth Stuart se vira para o confrontar, já não está lá. Voltará a aparecer noutro lugar, noutro tempo, possivelmente sobre uma nova forma na série que aí vem da Netflix. Quanto a Daniel Kehlmann, é pouco provável que vença o International Booker Prize (adiado para o final do verão na sequência da pandemia do novo coronavírus) pela sua criação escorregadia — as probabilidades não estão a seu favor. Mas o feito de ter criado Tyll, uma luz na escuridão de uma Europa fragmentada, já ninguém lho tira.