Venâncio Lucas, 26 anos, teve de fugir da sua aldeia arrasada por grupos armados no norte de Moçambique e só sobrou tempo para enterrar os dois irmãos assassinados no ataque.

“Fugimos para o mato. Quando voltámos à aldeia, encontrei os meus dois irmãos, gémeos, de 20 anos, que morreram nesse ataque e que enterrei”, num episódio que marcou a sua partida. Foi a 23 de setembro de 2019, a data em que 15 pessoas de Mbau foram assassinadas por grupos armados que aterrorizam a província de Cabo Delgado desde outubro de 2017 e a cujos ataques o grupo ‘jihadista’ Estado Islâmico se começou a associar faz esta quinta-feira um ano.

Analistas dividem-se acerca da ligação do grupo ao que se passa no terreno – entre oportunismo mediático e real intervenção -, mas um ano após a primeira reivindicação, mudou a descrição feita pelo governo moçambicano e autoridades internacionais, que passaram a classificar a violência armada em Cabo Delgado como uma importante ameaça terrorista.

Estima-se que mais de 600 pessoas já tenham morrido e que haja cerca de 200 mil pessoas afetadas, ou porque perderam os seus bens ou porque vivem em fuga para zonas seguras, sempre sem saber se onde virá a próxima refeição.

A vaga de deslocados cresce desde março, reflexo da intensificação dos ataques e confrontos entre grupos terroristas e as forças de defesa e segurança moçambicanas.

Jacinta Mohamede, 22 anos, fugiu de Muidumbe a 07 de abril com o marido e o filho, obrigados a viver no mato durante cinco dias. Em Pemba o problema é outro: “Não temos alimentação. Lá em casa cultivávamos para conseguirmos comer e aqui só conseguimos comer através de ajuda”.

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O padre Eduardo Oliver descreve a fuga de população de Cabo Delgado das suas terras como “um drama enorme” em que procuram segurança junto de familiares e amigos, porque não têm mais para onde fugir.

Jacinta e Venâncio são dois dos beneficiários da ajuda do pároco de São Carlos Lwanga no bairro de Mahate, em Pemba.

Os deslocados procuram uma ligação com alguém, por mais débil que seja, para receber ajuda, mas depois “não sabem como se sustentar” e aponta o exemplo de Pemba: “é uma cidade pobre, na periferia ainda mais, com famílias que já têm muitos problemas para sobreviver”. Depois há “aqueles que não têm ninguém, e conhecemos muitas pessoas, que ficam ao relento em sofrimento”, descreve.

Nós começámos a responder aos deslocados que vinham da zona norte logo em dezembro [de 2019], uma semana antes do Natal. Foi quando começaram a chegar famílias que rezam na nossa paróquia”.

Foi mobilizada a Cáritas Diocesana para ajudar “com roupa, alimentos, alojamento, cobertores, lonas e com tudo o que temos angariado com ajuda externa” para cerca de 800 pessoas.

No bairro de Metula, à entrada da cidade, há 1.050 pessoas referenciadas e o levantamento continua: no vizinho bairro de Muxara, há 163 famílias afetadas.

Fonte ligada às operações humanitárias disse à Lusa que as Nações Unidas e o Governo moçambicano estão a preparar um plano orçado em 35 milhões de dólares para resposta humanitária à situação vivida em Cabo Delgado.

Entretanto, as autoridades estatais têm também anunciado nos últimos dois meses a abertura de centro de acolhimento temporários e distribuição pontual de alimentos e outros materiais – ações que contam com o apoio de organizações como a Cruz Vermelha e a Organização Internacional das Migrações (OIM).

Venâncio diz que é camponês e que produzia “milho, gergelim e abóbora”, só que agora está “sentado” porque na cidade “não há lugar para fazer machamba (horta)”. “O problema é enorme. Implica uma resposta de emergência”, realça Eduardo Oliver.

Mas além de apoio humanitário, “do que precisamos é de paz, precisamos que se controle esse problema de terrorismo na medida do possível e que se garanta pelo menos um pouco de segurança nas aldeias do norte para as famílias voltarem para o lugar onde têm o seu sustento”, a sua horta, a sua segurança alimentar. Por agora, continua “um drama humanitário” e continuará até que as famílias consigam voltar à sua terra.

Sete meses depois continua a receber apoio de Eduardo Oliver enquanto recebe notícias de que já perdeu outros familiares: outro irmão em Xitaxi e um tio em Miangalewa. Precisa de ajuda porque continua a chegar mais família a Pemba que ele quer ajudar com comida e alojamento.

Voltar para a aldeia natal para já não está nos planos, nem dele, nem de Jacinta, pelo menos até terem certeza de que haja segurança – mas os ataques registados desde o início do ano deixam tudo em dúvida.

Desde março os grupos terroristas já ocuparam durante vários dias importantes povoações como Mocímboa da Praia, Muidumbe, Quissanga e Macomia.

O ministro da Defesa moçambicano, Jaime Neto, anunciou no domingo o abate de 78 membros dos grupos armados, entre os quais, dois cabecilhas tanzanianos.