Título: As Telefones
Autor: Djaimilia Pereira de Almeida
Editora: Relógio D’Água
Ano da Edição: maio de 2020
Páginas: 96
Preço: 17€

As Telefones foi publicado no final do mês de maio pela Relógio D’Água

Uma filha que não conhece o corpo da mãe. Uma mãe que já não consegue reconstituir a cara da filha. Entre uma e outra, uma distância enorme — a distância que vai de Portugal a Angola, de um mundo até outro — que apenas um telefone, núcleo central de uma relação que de outra forma não poderia existir, é capaz de encurtar. É esta, em traços gerais, a história de As Telefones, o novo livro de Djaimilia Pereira de Almeida que explora como a invenção de Alexander Graham Bell pode determinar e definir a relação entre duas pessoas, neste caso mãe e filha, tão próximas e obrigatoriamente tão distantes.

Publicado no final de maio, depois de um necessário adiamento, consequência da pandemia do novo coronavírus, As Telefones surge após o muito elogiado Luanda, Lisboa, Paraíso, vencedor do Prémio Oceanos em 2019, e do pouco notado A Visão das Plantas, lançado em novembro do ano passado. Escrito ao longo de nove anos, com muitas interrupções e muitos outros projetos pelo meio, As Telefones é uma obra curta e fragmentada, com uma história não linear e diferentes narradores (por vezes a filha, por vezes a mãe e por vezes um terceiro elemento, não participante), mas onde todos os pedaços de vida e memória destas duas mulheres se encaixam de forma a formar um único núcleo narrativo coeso.

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A ligar todas estas peças estão as complexas subtilezas que marcam a relação de uma mãe e de uma filha, que Djaimilia Pereira de Almeida é capaz de dotar de uma beleza extrema através de um uso cuidadoso e sensível das palavras, que nos dão a certeza de que a autora sabe muito bem o que está a fazer e que nada surge por acaso — nem mesmo a linha inicial do poema “A Leave-Taking”, de Swinburne (página 35), o verso de “Amazing Grace” (página 86) ou parte do discurso proferido por Theresa May no Parlamento britânico depois dos ataques de 2017 em Westminster (página 87).

A história de Filomena e de Solange, respetivamente mãe e filha, é feita de tudo isto, mas sobretudo de um o objeto, o telefone. É através dele que Filomena mantém o contacto com a filha, que vive em Portugal. Quando a fome lhe chegou à porta em Angola, Filomena decidiu enviar Solange para casa da irmã, Benedita, que morava com a família em Odivelas e onde nada faltava. A separação foi difícil, mas necessária. O telefone, naquele tempo ainda com um fio que só dava para esticar alguns metros, era a única forma de encurtar uma distância que é física, mas também psicológica.

À medida que os anos vão passando, Solange deixa de ser capaz de se lembrar do corpo da mãe; e Filomena já não é capaz de se recordar da cara da filha. As histórias da vida de uma e de outra misturam-se com as de outra, sem que se consiga discernir onde acaba uma e começa outra:

“Os primeiros anos das duas eram, ao fim de milhares de telefonemas, a mesma amálgama de duas vidas. Para a mãe, a infância da filha não se distinguia da sua própria infância. Os sonhos de uma, contados à pressa em charadas matinais, eram na vida da outra casas de pedra e cal”.

A única coisa que permanece impassível é o som das suas vozes. É essa a base da sua relação, construída a partir de um mar de telefonemas trocados entre dois mundos diferentes, Portugal e Angola, que em As Telefonemas, tal como em Luanda, Lisboa, Paraíso, surgem unidos por laços familiares indissolúveis. Este conforto das palavras que chegam por um auscultador e que multiplicadas por mil ajudam a aplacar a saudade e a diminuir o silêncio, significa um desconforto na hora do encontro. Mãe e filha estranham-se e é preciso que, após o choque inicial, uma e outra se habituem à coexistência dos seus corpos no mesmo espaço e sem um telefone a separá-los.

“O teu perfume não me engana, única coisa na mesma. Mas não bate certo com o resto, como se o tivessem transferido gota a gota para dentro de outra pessoa, que não reconheço. O cheiro da tua roupa, da tua carteira, da tua maquilhagem, do teu sabonete. Só te deixo entrar em minha casa porque o teu cheiro confirma a tua identidade.”

A ligação entre mãe e filha, que começa por ser estabelecida por meio de uma linha telefónica que muitas vezes não funciona, vai ganhando novos contornos à medida que o tempo passa e a história avança. Os telefones deixam de ter fio, as viagens tornam-se mais fáceis e Lisboa torna-se mais bonita (“Lisboa mudou, tão lindo, o Tejo, essa cidade é bem linda mesmo”). Filomena e Solange envelhecem (passam 40 anos) e o tempo já não pode voltar para trás. E no meio de todas estas transformações, há algo que também muda dentro do próprio livro — As Telefones deixa de ser apenas sobre duas mulheres-telefones que a vida separou, revelando-se como uma homenagem de grande beleza de uma filha a uma mãe, ao seu perfume floral que enche toda a casa e ao seu cheiro a manteiga de karité que ficou na almofada.