Um dia depois da aprovação do Orçamento Suplementar com o apoio do PSD e com o voto contra do PCP, pela primeira desde o início da velha geringonça em 2015, António Costa vestiu a pele de secretário-geral do PS e foi ao Largo do Rato descansar as hostes: “Connosco não haverá bloco central”, até porque “não foi o PS que votou ao lado do PSD no orçamento”. Costa não quer “equívocos” e por isso garante aos socialistas que não se vai aproveitar de “boas sondagens” para “precipitar uma crise política”; quer “estabilidade” e garante que vai continuar a estar onde sempre esteve: à procura de entendimentos à esquerda, tanto nos orçamentos, como no plano de recuperação pós-crise, até ao fim da legislatura. Tudo o resto, diz, não passam de “joguinhos políticos” praticados “à esquerda e à direita”.
“Uns estão à espera que a crise nos desgaste para, a seguir às autárquicas, poderem pôr em causa a nossa estabilidade [o PSD]. Outros, vão-nos deixando sozinhos para depois nos acusarem de governar à direta [o PCP e o BE]. Mas eu queria que não houvesse nenhum equívoco em relação àquilo que o PS pensa sobre as condições de governabilidade do país: o PS não vai em boas sondagens para precipitar uma crise política, porque não temos medo de assumir as nossas responsabilidades e governar Portugal“, disse na intervenção de abertura da Comissão Nacional do PS, órgão máximo do partido entre congressos, que decorre esta manhã em Lisboa.
Foi assim mesmo, nos primeiros cinco minutos de intervenção, que disse tudo o que tinha para dizer. “Já percebemos que, à esquerda e à direita, todos se preparam para começar com joguinhos políticos. Mas eles caem no erro de confundir a bolha política com o que é o país real”, disse ainda, referindo-se não só ao PSD como ao PCP, que procuraram usar esta discussão do orçamento suplementar para marcar posições políticas para dentro. O país real, disse, são as pessoas que perderam o emprego, que continuam angustiadas com a pandemia, que perderam rendimentos, ou os empresários que temem pelo futuro das empresas perante a crise. Essas pessoas e essas empresa são “o essencial”. E é no essencial que o PS se tem de focar “a 100%”.
Tudo o resto são “calculismos políticos e taticismos”. O tiro ao alvo atingiu em cheio tanto a esquerda como a direita. A ideia que Costa quis deixar clara foi de que “não mudou de ideias” desde 2014 quando se candidatou a secretário-geral do PS e quando fez uma inédita coligação à esquerda para governar o país, nem tão pouco deixou de perceber, de um dia para o outro, o sinal que os eleitores lhe deram quando, em 2019, quatro anos depois da geringonça, votaram nas legislativas pela continuação da geringonça na medida em que não deram maioria absoluta ao PS.
“Eu não mudei de ideias desde o momento em que me candidatei a secretário-geral do PS em 2014: o bloco central não é a solução para a governação do país. A nossa democracia precisa de alternativas claras no campo democrático. E no nosso sistema partidário é evidente que há uma alternativa à direita polarizada no PSD e uma à esquerda polarizada no PS. Foi com esta visão que me candidatei a secretário-geral do PS, foi com esta visão que em 2015 encontramos uma solução maioritária que permitiu ao país enfrentar uma alternativa à austeridade, e é com este espírito que prossigo a ação governativa”, disse, com os dirigentes socialistas presentes na sala, e os presentes em vídeo chamada, a irromperem em aplausos.
Esquerda destinada a ficar junta? Mandato dos eleitores é “para nos entendermos”. Na saúde e na doença
E se restassem dúvidas, Costa ainda usaria outras palavras para explicar melhor, recorrendo mesmo a uma breve cronologia: “Não altero a interpretação que fiz dos resultados eleitorais e reafirmo exatamente o que disse no encerramento do debate do orçamento suplementar”. Em 2019 o país “desejava” a continuação da geringonça “com um PS mais forte e um parlamento mais diversificado”, daí que muitos portugueses que até costumavam votar no PS tenham votado mais à esquerda para dar força à geringonça e para não dar maioria absoluta ao PS, e não há razões para deixar de ser assim.
Até porque, lembrou, não foi o PS que “votou ao lado do PSD” nem “ao lado do CDS” neste orçamento. Costa referia-se às várias medidas do orçamento suplementar que foram aprovadas com o entendimento entre a esquerda e a direita, como é o caso da suspensão da devolução dos manuais escolares, uma proposta do CDS que colheu o apoio não só da direita como do BE e do PCP.
Apesar de tudo, Costa continua, “obviamente”, a contar com os parceiros da esquerda (PCP, BE e PEV) para prosseguir uma estabilidade renovada no horizonte da legislatura. E se o PAN e o Livre se quiserem juntar “são bem-vindos”. Essa estabilidade deve ser garantida, diz Costa, “não só na preparação dos orçamentos” como também no “programa de recuperação económica do país”. “Eu recuso-me a aceitar que a esquerda só se consiga entender quando está em causa os salários subirem mais isto ou mais aquilo, e não seja capaz de se entender sobre uma visão comum ao país e sobre as bases da recuperação económica. Isso seria negarmos a confiança que os eleitores depositaram em nós e a esperança que muitos tiveram. Sei bem que muitos votaram no PEV para prosseguiram a geringonça, e sei que muitos não votaram no PS, e foram votar no PCP e no BE, para não termos maioria absoluta e para prosseguirmos a geringonça”, disse.
Ou seja, “o mandato que recebemos foi para nos entendermos”. Na saúde e na doença até que a legislatura acabe. “Este é o caminho que temos de prosseguir e este é o caminho que temos de seguir em conjunto”. Como se estivessem destinados a ficar juntos, pelo menos mais três anos, já que foi nisso que os portugueses votaram. Independentemente de o clima económico ser favorável ou de haver uma crise de contornos incalculáveis. Se depender do PS e de António Costa, é isso que vai acontecer. Está dada a garantia.
Até porque é preciso evitar que aconteça uma coisa que ninguém deseja, que é a situação de “um achar que o outro vai agir de uma forma, e com isso condicionar o seu próprio comportamento, e depois, enganando-se na forma como prevê que o outro vai agir, acontece algo que ninguém deseja”. Ou seja, é preciso evitar “equívocos” como os que surgiram, por exemplo, no meio da discussão do orçamento em que o BE ou o PCP confiavam que o PSD fosse votar de uma maneira, tendo votado de outra. Por isso, mais uma vez, para não restarem (mesmo) dúvidas, repitam todos com António Costa: “Connosco não haverá bloco central [como quem diz, o PSD não é de confiança], connosco haverá a continuidade da política que seguimos desde novembro de 2015”.
No final, Costa ainda deixou mais uma garantia: a dos consensos, a da estabilidade governativa (com consensos entre os parceiros da esquerda) e a da estabilidade duradoura (até ao fim da legislatura). O caminho não será fácil, seria mais fácil sem crise e sem pandemia, e seria sobretudo mais fácil se o país continuasse a cavalgar a onda do crescimento económico, mas “é a vida”, “como diria António Guterres”. Perante a crise, a resposta só pode ser a da “responsabilidade” na resposta à crise.