A formulação já tinha sido usada por António Costa no encerramento do debate do Orçamento Suplementar na generalidade: “Queremos uma renovada estabilidade no horizonte da legislatura”. Era um pedido de renovação dos votos com a velha geringonça. E foi repetida por António Costa esta sexta-feira, depois de aprovado o orçamento em votação final: “Gostaríamos que pudesse ser reconstruida uma relação com renovada estabilidade no horizonte da legislatura”. No primeiro caso, Costa antecipava o abraço de urso que o PSD estava a dar ao viabilizar o orçamento, e, no segundo caso, Costa tentava juntar os cacos deixados por esse abraço. É que, pela primeira vez desde a formação da geringonça em 2015, o PCP e o PEV saltaram fora e votaram contra. E, pela primeira vez desde o início da geringonça, o PSD viabilizou um orçamento ao Governo de António Costa.

O que é que isto significa para a renovada estabilidade da geringonça no horizonte da legislatura? Costa desvaloriza o corte do PCP, falando numa “exceção à regra” e lembrando que o PCP é o primeiro a dizer que um voto contra no suplementar não significa que o voto vai ser igual nos orçamentos futuros; o PS faz juras de amor à esquerda, ignorando as aproximações que fez com o PSD e que se estendem para lá do orçamento; o Bloco diz que “não há negociações em curso” para o futuro e avisa que um orçamento que o PS decida negociar com o PSD “não contará seguramente com o Bloco”; Rio chama a si a “responsabilidade” devido ao período excecional da pandemia; a direita diz que Rio é o novo braço da geringonça e que se demitiu de fazer oposição; e Jerónimo? Jerónimo remete-se ao silêncio. O murro na mesa está dado.

Costa e Rio. O toque de cotovelo é o novo piscar de olho

Com o ano eleitoral à espreita (com presidenciais e autárquicas em 2021), é certo que cada um tenta falar para dentro do seu eleitorado. Foi o que aconteceu neste processo orçamental, que serviu mais para vincar posições do que para antecipar cenários futuros. Terminada a votação do orçamento, dentro do hemiciclo, com o Governo a assistir mas sem intervir, foi do lado de fora, nos Passos Perdidos, que tudo se desenrolou. Era preciso explicar o que tinha acontecido, quem estava ao lado de quem e porquê. Só Jerónimo de Sousa se absteve de comentar, estava tudo dito: “a convergência PS-PSD” para aprovar o orçamento e “chumbar” as propostas dos comunistas era a gota de água num orçamento cheio de “insuficiências” e “desequilíbrios”.

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O primeiro foi António Costa, que se dirigiu aos jornalistas para dizer que PCP e PEV fizeram uma avaliação “incorreta” do Orçamento, mas que considerava que isso não era problemático porque o próprio João Oliveira tinha dito na véspera que o “este voto contra não compromete em nada o diálogo que se tem mantido desde novembro de 2015, designadamente para o Orçamento de 2021 e para os anos seguintes”. Dizendo que continuaria a trabalhar com o PCP e o PEV da mesma forma, e “no mesmo espírito”, com que trabalhou até aqui, Costa sublinhou que o importante é que o orçamento aprovado não traz austeridade, mas reforça sim o Estado social.

Em nenhum momento Costa se referiu ao papel do PSD, que foi fundamental para viabilizar o Orçamento, uma vez que sem a abstenção dos sociais-democratas e com o chumbo do PCP o orçamento não passaria. Também os deputados do PS, durante as declarações de voto orais sobre o orçamento, em nenhum momento se referiram às conquistas conseguidas à boleia do PSD, com João Paulo Correia a limitar-se a enaltecer “as muitas propostas do PCP que foram aprovadas e as muitas propostas do BE que foram aprovadas”, e com Marina Gonçalves a sublinhar o “esforço de convergência” dos socialistas com os partidos de esquerda, que se deverá manter no orçamento para 2021.

Para o PSD, que foi uma ajuda preciosa do Governo para travar medidas dispendiosas da esquerda, só palavras duras: “Depois de aprovarem medidas de aumento da despesa [como a da suspensão da devolução dos manuais escolares] não venham, daqui a uns meses, pedir responsabilidade pela não execução das metas”, disse João Paulo Correia dentro do hemiciclo. Questionado sobre se o orçamento suplementar traduzia uma espécie de bloco central temporário, António Costa desvalorizou e preferiu apenas dizer que se trata de um orçamento “equilibrado” que o “país precisa”. Sobre o papel de Rui Rio, nem uma palavra. Apenas um toque de cotovelo quando, terminadas as declarações aos jornalistas, se cruzou com o líder do PSD no corredor. O toque de cotovelo é o novo piscar de olho? Talvez.

Depois do cumprimento, era a vez de Rui Rio ir pôr os seus pontos nos ‘is’. A viabilização do Orçamento não quer dizer que o PSD está a “dar a mão” ao PS, e ao Governo, mas sim “ao país”. Defendendo que votar contra um Orçamento Suplementar que visava responder às consequências da Covid-19 “não fazia sentido nenhum, a não ser por questões de tática partidária”, Rui Rio rejeitou a ideia de que o PSD esteja “mais próximo do PS” depois desta votação. Mas admitiu que houve “abertura” dos socialistas para negociar.

BE avisa: há negociações em marcha entre PS e PSD e não é só no Orçamento

Depois de Rui Rio, era a vez de Catarina Martins dizer de sua justiça. Na fila para falar, a coordenadora bloquista ouviu Rio e, sem toques de cotovelo ou outro tipo de cumprimento, avançou para falar. Primeiro: um orçamento para resolver uma crise de emergência devido à pandemia não é, nem podia ser, um primeiro take do Orçamento do Estado do ano que vem. Depois, é inegável que o que está a acontecer neste momento é um acordo entre PS e PSD e, se isto continuar assim, então o Governo que não conte mais com o BE.

“Na verdade o que estamos a observar neste momento no país é um acordo – chame-se negociação ou não – entre PS e PSD”, avisou, sugerindo que não é só no Orçamento que isso se verifica mas também nas alterações regimentais que os dois se preparam para fazer no Parlamento (com as alterações na periodicidade dos debates quinzenais), e também no “acordo para a eleição de órgãos externos à Assembleia da República”.

Como Rui Rio feriu a geringonça com um Bloco Central de verão

É que o PS, foi conhecido hoje, indicou o ex-eurodeputado Francisco Assis para a presidência do Conselho Económico e Social e Rui Rio apressou-se a dizer que concordava com o nome “sensato” e com a “proposta feliz”, embora rejeitasse que tivesse havido “negociação”. Quanto aos debates quinzenais, Rio também assumiu que PS e PSD têm uma “visão parecida” sobre o tema, daí quererem os dois resolver o assunto já à pressa (a votação será no dia 23 de julho), para que as mudanças entrem em vigor já em setembro. Num ápice.

Tudo motivos para Catarina Martins deixar no ar o aviso: “um orçamento que o PS decida negociar com o PSD não contará seguramente com o Bloco”. E quanto a negociações futuras, outro aviso: a”a vontade negocial tem de ser concreta”. Ou seja, não bastam proclamações sobre a vontade de renovar a estabilidade no horizonte da legislatura. Para já, o orçamento retificativo de resposta à crise foi aprovado com a ajuda do PSD (que aceita e agradece o carimbo de partido responsável e imune a táticas partidárias), e sem o PCP. Depois da ferida aberta, será preciso muita negociação concreta para, em 2021, o filme ser outro. E, agora, o PCP vai poder vender-se caro.