Título: Com Borges
Autor: Alberto Manguel
Editora: Tinta-da-China
Ano da Edição: junho de 2020
Páginas: 96
Preço: 11,90€
Alberto Manguel tinha 16 anos quando conheceu Jorge Luis Borges, autor já consagrado, numa livraria em Buenos Aires, a Pygmalion. Borges tinha começado a perder a visão aos 30 anos e, por volta dos 60, estava praticamente cego. O escritor tinha um “tipo particular” de cegueira, “prevista desde a nascença” — o bisavô e avô tinham morrido cegos, e também o seu pai tinha perdido muito cedo a capacidade de ver. Quando a cegueira de Borges se instalou definitivamente aos 58 anos, começou a recorrer aos olhos dos outros, pedindo-lhes que lessem para ele. Os livros eram essenciais para ele, e acompanharam-no até aos últimos momentos da sua vida — em Genebra, onde morreu em 1986, uma enfermeira de expressão alemã leu-lhe Henrich von Ofterdingen, de Novalis.
Foram vários os leitores de Borges, mas um dos mais famosos é sem dúvida Manguel. Todas as biografias do tradutor e ensaísta o referem, como se se tratasse de um marco inesquecível e imprescindível na sua vida. Mas a noção do privilégio que foi ler Rudyard Kipling ou Henry James para um dos grandes escritores do século XX só lhe chegou mais tarde. Aos 16 anos, Manguel atravessava a porta da casa escura que Jorge Luis Borges partilhava com a mãe já idosa, Leonor, e a empregada, Fany, com uma “displicência” que escandalizava profundamente a sua tia, “que o admirava imensamente” e que lhe pedia que tirasse notas das suas conversas a uma meia luz que parecia “convir à cegueira do velho homem”.
É sobretudo assim, como “velho homem”, que Manguel se refere a Borges no pequeno livro de memórias que recentemente lhe dedicou, talvez porque era assim mesmo que o escritor lhe surgia diante dos seus olhos jovens capazes de perscrutar a escuridão — como um ancião com uma memória de elefante (“lembrava-se de tudo”), uma vida simples e espartana (a sua casa não tinha tantos livros quanto se possa imaginar), alguns amigos próximos (entre eles os escritores Bioy Casares e Victoria Ocampo) e um gosto por longas conversas à hora de jantar. Estas recaíam necessariamente sobre literatura e eram por vezes interrompidas por um poema que lhe surgia.
Devido à cegueira, Borges habitou-se a compor os seus poemas (tinha deixado a prosa) dentro da sua própria cabeça. Quando estavam prontos, ditava-os, indicando sempre onde colocar a pontuação. Alberto Manguel ajudou-o muitas vezes nessa tarefa, substituindo-o no ato aparentemente intransmissível de passar um poema para o papel. Nesses momentos, Manguel transformava-se nos olhos do “velho homem” que, apesar do seu enorme talento e inteligência, não era alheio a defeitos. “Apesar do seu profundo humanismo”, que levou a que renegasse o aperto de mão que deu a Pinochet, era capaz de “um racismo absurdo” e de opiniões literárias que tinham apenas por base a “simpatia” ou o “capricho”.
Manguel não ignora os seus defeitos, mas é sobretudo as suas qualidades que exalta em Com Borges. Memória dos quatro anos de serões que passou em casa do escritor, de 1964 a 1968, o livro apresenta também o essencial da sua obra, da sua teoria e conceitos literários e a sua relevância. “O seu interesse era a literatura, e nenhum escritor no vociferante século XX foi mais importante do que ele para mudar a nossa relação com a literatura”, declara Alberto Manguel, explicando que o seu contributo passou pelo desenho de “mapas onde podemos ler outras explorações — em especial no domínio do seu género literário preferido, o fantástico, que nos seus livros abarca a religião, a filosofia e a matemática avançada”.
Com Borges não foi escrito com base nas tais notas que a tia insistia que tirasse, mas na memória fugidia dos serões de leitura e conversas que “já desapareceram”. Talvez por isso nem tudo tenha sido exatamente como o tradutor argentino o descreve, e Manguel admite-o: “O rapaz que subia as escadas perdeu-se algures no passado, como se perdeu o velho sábio que adorava histórias”. Mas o essencial sobreviveu à passagem do tempo: “O rio arrastou consigo todas as coisas daqueles serões, exceto a literatura, que (teria dito Borges, citando Verlaine) é o que fica depois de o essencial, sempre inacessível, às palavras, se pronunciar”. E que melhor maneira de homenagear um homem que foi sobretudo literatura?