Fosse pela exibição muito abaixo do normal até aos 70 minutos, fosse pela derrota nas grandes penalidades, fosse pela postura na área técnica (e alguns jornais brasileiro passaram o encontro inteiro a olhar para o banco onde o português andava para tentar perceber se alguma coisa mudava), o desaire do Flamengo na final da Taça Rio com o Fluminense, que obrigou o campeão brasileiro e sul-americano a mais dois jogos para decidir o título estadual com o mesmo adversário, foi muito mais do que isso. Sim, é verdade que se falou de Jorge Jesus como sempre. Mas sim, também é verdade que a continuidade de Jorge Jesus é colocada em causa como nunca. E os últimos dias foram marcados por uma autêntica telenovela, daquelas que aproximaram desde cedo o treinador do Brasil.
“Toda a minha ligação ao Brasil, ao Flamengo e ao Rio de Janeiro foi derivada ao futebol. O futebol faz parte da cultura de um pouco e no Brasil o futebol é cultura. Começámos em Portugal a conhecer o que era a cultura brasileira com as telenovelas e com muitos cantores, agora são eles que também cantam e são atores em Portugal. Há uma ligação muito estreita entre estes dois países e todas as pessoas com quem falo têm raízes portuguesas. O meu País está orgulhoso de mim. Para Portugal, obrigado”, referiu Jorge Jesus na cerimónia em que recebeu a distinção de Cidadão Honorário do Rio de Janeiro, entre citações de Fernando Pessoa, alusões aos tempos de D. João VI e convites para o Sambódromo como se fosse mais um carioca entre milhões de cariocas.
Agora, o português que via telenovelas brasileiras tornou-se a figura principal da novela de um português no Brasil. “Se fica? Têm de perguntar a ele mas fica”, garantiu o presidente do Flamengo, Rodolfo Landim. “Encontrei o Jorge várias vezes no balneário, vim ao lado dele no autocarro e não conversámos absolutamente nada… Bem, também não há nada para falar”, acrescentou o vice-presidente para o futebol, Marcos Braz. Mas seria mesmo assim? Nem por isso. E houve alguns pormenores que revelaram isso mesmo, com o responsável pela área desportiva a estar três dias seguidos no Ninho do Urubu (primeira vez desde a pandemia). “O problema do Flamengo hoje chama-se Fluminense”, disse Braz aos jogadores, tentando serenar um ambiente que já esteve mais sereno.
O que aconteceu então nos últimos tempos para a novela que toda a gente adorava ter mudado tanto de argumento entra a primeira e a segunda temporada? Façamos uma sinopse para perceber o capítulo que se seguia.
Episódio 1) Quando Jorge Jesus chegou ao Brasil, e por muito que puxasse dos galões dos títulos conquistados em Portugal pelo Benfica e dos encontros feitos na Liga dos Campeões, era visto com alguma desconfiança, até pela forma como Abel Braga, que tinha ganho o Estadual, tinha saído; 2) A contestação no aeroporto após a eliminação da Taça do Brasil frente ao Athl. Paranaense e a desilusão depois da derrota com o Emelec na primeira mão dos oitavos da Libertadores; 3) A passagem aos quartos da Libertadores nos penáltis que foi seguida por um pesado desaire com o Bahia no Campeonato; 4) As oito vitórias consecutivas no Campeonato que deram a liderança da prova; 5) A goleada no Maracanã ao Grêmio que valeu a passagem à final da Libertadores; 6) O triunfo histórico no jogo decisivo da Libertadores com uma reviravolta nos últimos minutos e a conquista do Campeonato 24 horas depois e quando o plantel estava a acabar o cortejo pelas ruas do Rio de Janeiro a celebrar a vitória na principal prova sul-americana; 7) A derrota no prolongamento da final do Mundial de Clubes que mesmo assim teve uma manifestação de orgulho pelos adeptos rubro-negros; 8) As várias condecorações e cerimónias com o treinador como intérprete principal; 9) A pandemia, a renovação de contrato e o regresso das competições.
Como os mandamentos, faltava conhecer o décimo. Que estava em aberto. E que tinha várias histórias que se iam cruzando: a saída de Bruno Lage do Benfica, o assumir de Luís Filipe Vieira de que Jorge Jesus era a prioridade para a próxima temporada, a esperança dos dirigentes do Flamengo que o técnico iria cumprir contrato – até porque, quando Rodolfo Landim perguntou ao português o que poderia levá-lo do clube antes da renovação, a resposta foi apenas a pandemia e o atraso no regresso das competições. No Ninho do Urubu, a imprensa carioca falava de um treinador menos interventivo, mais fechado e um ambiente de incerteza que tão depressa mostrava traços de despedida antecipada como de garantia que o futuro passava por ganhar tanto ou mais do que em 2019.
O retrospecto do confronto de hoje é favorável ao Flamengo #FLAxFLU #MengaoNaFinal pic.twitter.com/pQXdqOKTa3
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No entanto, e qualquer que fosse o futuro de Jesus, esse seria apenas definido no final do Campeonato Carioca, que teve mais dois encontros após o jogo decisivo da Taça Rio. E as próprias declarações depois do encontro serviram de condimento para a primeira mão da eliminatória decisiva para o título. “O Flamengo praticamente dominou o jogo todo, o Fluminense não nos criou quase perigo nenhum. Só jogou para não perder ou então para não perder por muitos. Nas grandes penalidades, foi melhor. Parabéns. Na segunda parte, o Flamengo fez um golo e teve várias oportunidades, por exemplo com Gerson e Bruno Henrique. Tivemos mais situações de golo do que no primeiro tempo. Se hoje ganhássemos, acabava, éramos campeões. Agora temos dois jogos contra o Fluminense. Vamos encarar com a mesma certeza e a mesma confiança com que fizemos este jogo”, disse.
Mister observando tudo no aquecimento. Bora! #FLAxFLU #MengãoNaFinal pic.twitter.com/VhMUzLJJWa
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Adeptos, jogadores e elementos do staff do Fluminense não gostaram da análise mas era no campo que seriam apresentadas as respostas, num duelo que tinha todas as condições para ser ainda melhor e mais competitivo do que o da última quarta-feira, mesmo tendo em conta o conhecimento profundo que ambas as equipas tinham do seu adversário. E Jesus mudou, nos nomes e sobretudo nas movimentações ofensivas (com sucesso, acrescente-se): além de trocar Gustavo Henrique por Léo Pereira na defesa, lançou Diego como ‘8’ em vez de Gerson, substituiu Vitinho por Éverton Ribeiro e tirou o lesionado Bruno Henrique por Pedro. À exceção dos cinco/dez minutos iniciais, em que os visitados foram melhores, o Flamengo teve o controlo e ganhava ao intervalo.
Nosso Time é a Gente em Campo! O Flamengo está escalado para enfrentar o Fluminense no primeiro jogo da decisão do Campeonato Carioca. Vai pra cima deles, Mengo! #FLAxFLU #VamosFlamengo #MengaoNaFinal pic.twitter.com/8diYL2f4Kn
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Com Diego a dar outro critério na construção e Vitinho mais envolvido nas ações defensivas a ajudar Rafinha na direita nas perigosas subidas de Egídio, Pedro foi o fator diferenciador entre os dois conjuntos não só pelo golo mas também por ter movimentos mais posicionais que davam outra liberdade a Gabriel Barbosa e permitiam mais jogo interior do Flamengo. A jogada do 1-0, numa combinação entre Diego e Gabigol, mostrou isso mesmo, num lance que custou ainda mais aos adeptos da casa (e em casa, acrescente-se, porque no Brasil continua a jogar-se apenas à porta fechada) por se tratar de um reforço do Flamengo resgatado na Europa (Fiorentina) após ter-se destacado no Fluminense, clube que colocou em tribunal mal voltou ao Brasil por pagamentos ainda em falta.
LINDA TROCA DE PASSES E UM BELO CHUTE DO MEU CRIA @Pedro9oficial! #FLAxFLU #MengãoNaFinal pic.twitter.com/j6Du6HN9mX
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Na segunda parte, tudo mudou. Dodi, num remate de meia distância para defesa apertada de Diego Alves, e Yago Filipe, numa jogada onde surgiu sozinho na área descaído sobre o lado direito sem grande ângulo, deixaram os avisos iniciais para algo que era uma questão de tempo e apareceu a meia hora do final, quando Egídio conseguiu finalmente descer pelo corredor esquerdo, fez o cruzamento e Evanilson, nas costas dos centrais contrários, deu o toque final na pequena área para o empate. Os gritos de Jesus faziam-se ouvir (ainda mais, por não haver público) mas era o Fluminense que continuava a carregar, com Diego Alves a travar novo remate de fora da área de Yago Filipe. Quis tanto que acabou por ser apanhado em inferioridade e o Flamengo não perdoou: Rafinha lançou longo para Gabriel Barbosa, o avançado passou o primeiro adversário e assistiu Michael, outro dos reforços para a nova temporada que foi o grande destaque do último Campeonato pelo Goiás, a empurrar para o 2-1 (73′) antes do caso do jogo, com Gabigol a ver o segundo amarelo numa substituição onde era Rodrigo Caio que devia sair (90′) e que deixou Jesus furioso com os árbitros e, mais tarde, pegado com o técnico do Flu, Odair Hellmann.
O GOLAÇO PELO ÂNGULO EXCLUSIVO DO ESTAGIÁRIO! @gabigol ▶️ @michael19real ▶️ ⚽️???? #FLAxFLU #MengãoNaFinal pic.twitter.com/sJX8VJSyR1
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Odair deixou o Jorge Jesus no vácuo. E essa leitura labial? #FLAxFLU #Fluminense #Flamengo pic.twitter.com/aawcPRWPGO
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Sem que tenha justificado na segunda parte, o Flamengo ganhou vantagem para a segunda mão da final do Campeonato Carioca, na próxima quarta-feira. E, entre vários marcos históricos já atingidos nos rubro-negros, Jesus pode tornar-se o primeiro treinador estrangeiro a ganhar pelo clube o Estadual 55 anos depois do argentino Armando Renganeschi. Sobre o resto da novela, todos aguardam os próximos capítulos. Mais do que uma escolha a breve prazo, o treinador terá de tomar uma decisão que marcará os anos seguintes da carreira: ou fica no Brasil, tenta repetir o sucesso com o Fla chegando ao Mundial de Clubes e visando a possibilidade de um dia chegar mesmo à seleção ou regressa já à Europa sem perder a esperança pessoal de dar um salto para um clube que lhe permita discutir um dia a Liga dos Campeões. Antes, tem mais um título por disputar e que se pode juntar a Campeonato, Taça dos Libertadores, Supertaça Sul-Americana, Supertaça do Brasil e Taça Guanabara.