A Câmara dos Comuns publicou um relatório que concluiu que o governo britânico não desenvolveu os esforços necessários para investigar as suspeitas em torno da suposta interferência da Rússia nos referendos para a independência da Escócia (2014) e do Brexit (2016).

“As provas escritas que nos chegaram parecem demonstrar que o GSM [Governo de Sua Majestade] não viu ou não procurou provas de que houve uma interferência efetiva nos processos democráticos do Reino Unido”, lê-se no relatório da autoria da comissão parlamentar para os serviços de informação.

A conclusão daquele relatório é a de que o governo não levou a sério as alegadas tentativas de interferência por parte da Rússia nos seus meios de soft-power, como é a televisão RT e a agência Sputnik.

“Uma vez que a comissão já tinha sido informada de que o governo considera os conteúdos de acesso público se encaixam no conceito de ameaça, foi surpreendente que, desta maneira, não tenha sido considerado como tal”, lê-se naquele relatório.

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O relatório, que foi publicado esta terça-feira com várias frases e palavras rasuradas, trava a fundo no momento de determinar se aquelas ações tiveram ou não influência nos resultados finais, onde ficou ditada a permanência da Escócia no Reino Unido e a saída britânica da União Europeia.

Para que seja possível chegar a alguma conclusão desse género, a comissão parlamentar refere o exemplo dos EUA em 2016 e defende uma solução “análoga” no Reino Unido.

No caso norte-americano, perante sinais de tentativas de interferência russa nas eleições presidenciais de 2016, bastaram dois meses após a ida às urnas para que as agências de serviços de informação publicassem um relatório conjunto sobre esse tema. Naquelas páginas, ficou determinado que tinha havido um esforço diretamente orquestrado pelo Kremlin — tendo mais tarde ficado por provar que Donald Trump tenha agido em conluio com Moscovo durante a campanha.

“A comissão defende que os serviços de informação do Reino Unido devem produzir uma avaliação análoga quanto à possível interferência russa no referendo à UE”, defendem os deputados daquela comissão, acrescentando que deve ser publicado um “sumário desclassificado” dessa possível investigação.

“Mesmo que a conclusão de qualquer avaliação seja que a interferência foi reduzida, tal representaria de qualquer modo para o público um elemento tranquilizador quanto à segurança dos processos democráticos do Reino Unido”, refere.

Afinal, o que diz o relatório?

Assinado pela Comissão de Serviços de Informação e Segurança (ISC, na sigla inglesa), o documento divide-se em 55 páginas, cuja publicação tinha vindo a ser sucessivamente adiada nos últimos nove meses.

Estas são algumas das suas principais conclusões:

O governo britânico — que desde então contou com três conversadores ao leme, a saber: David Cameron, Theresa May e Boris Johnson — “não encontrou ou não procurou provas de que houve uma interferência efetiva nos processos democráticos do Reino Unido”;

O governo britânico “subestimou gravemente a ameaça russa e a resposta que esta requer”, naquilo que foi uma tendência do pós 11 de setembro de 2001, de considerar como principal ameaça o terrorismo de inspiração islâmica, apesar de incidentes como o homicídio do ex-espião russo Alexander Litvinenko terem ocorrido em solo britânico;

A Rússia utilizou “media estatais e tradicionais” como a RT, Sputnik para tentar interferir nas eleições. Além disso, recorreu a bots e a trolls (simplificando, perfis falsos) nas redes sociais;

A Rússia “considera que o Reino Unido é um dos principais alvos ocidentais dos seus serviços de informação”. Embora admita que o Reino Unido não sofre o mesmo “nível e tipo de ameaças que sofrem os países nas fronteiras da Rússia”, a comissão deixa claro que o Reino Unido é o terceiro na lista de prioridades de Moscovo — atrás apenas dos EUA e da NATO;

Há “vários membros da elite russa com ligações próximas a Putin” que fizeram “donativos a partidos políticos” — e que o seu perfil público os coloca “em posição para ajudar nas operações de influência russas”;

O relatório acrescenta que há “membros da Câmara dos Lordes que têm interesses económicos relacionados com a Rússia, ou trabalham diretamente para empresas russas ligadas ao Estado russo”, referindo que “estas relações devem ser cuidadosamente escrutinadas”.

Governo garante que “não viu provas” de interferência russa e rejeita relatório como nos EUA

A reação do governo britânico tem sido contida, com Boris Johnson a resguardar-se neste momento. Ainda assim, perante a formulação feita pela comissão no relatório divulgado esta terça-feira — “não viu ou não procurou provas” — , a equipa de comunicação do primeiro-ministro opta pela opção mais segura.

“Não vimos quaisquer provas de que tenha havido uma interferência efetiva no referendo da UE”, disse um porta-voz do Governo aos media britânicos. “Os nossos serviços de informações e de segurança avaliam regularmente as ameaças colocadas por ativistas estatais hostis, incluindo quaisquer possíveis interferências em processos democráticos britânicos do passado ou atuais”, referiu ainda esse porta-voz. E, desta forma, o governo rejeita a abertura de um inquérito como nos EUA: “Tendo em conta esta abordagem enraizada, uma avaliação retrospetiva do referendo à UE não é necessária”.

Mais tarde, o governo britânico reagiu numa resposta — também ela longa, exposta num documento de 20 páginas — onde rejeita algumas das conclusões do relatório.

O executivo de Boris Johnson recusa que tenha “subestimado a ameaça russa”, referindo que havia no governo a consciência de que a Rússia representa uma “ameaça para o Reino Unido e para os seus aliados” — sendo este perigo multifacetado e divido em frentes como as “capacidades militares, a desinformação, ilícitos financeiros, operações de influência ou ciberataques”.