Quando a pandemia do novo coronavírus se instalou em Portugal e com ela congelou totalmente o setor do turismo, o Torel Palace Porto tinha inaugurado há pouquíssimos meses. Quando parecia ter chegado o momento de o poder voltar a mostrar, depois de vários anos de desgaste e portas fechadas, a ironia do destino ditou outra vez o encerramento. Nesta fase em que o turismo aos poucos ameaça querer regressar — passam poucos dias desde a retoma simplificada dos voos de e para o Reino Unido, por exemplo — a sua reabertura está dependente da forma como a situação evoluir. O que se perde então com as portas fechadas deste palacete no coração da Invicta que espera para retomar a sua nova vida?
Corria o ano de 1861 quando António Campos Navarro decidiu que o sucesso que já tinha conquistado como comerciante de tecidos, cereais, vinhos e muitos outros artigos importados já merecia uma manifestação física: um palácio na sua cidade, o Porto, grande o suficiente para lá caber a sua família. Assim foi. Hoje, 159 anos mais tarde, esse mesmo número 42 da rua Entreparedes deu lugar ao Torel Palace, o mais recente projeto desta cadeia de pequenos boutique hotels que tem projetos espalhados de norte a sul do país.
Este edifício do século XIX foi pensado dentro do estilo romântico tão característico da altura e isso sente-se ainda hoje, quanto mais não seja porque as extensas obras de recuperação a que foi submetido pretenderam preservar ao máximo tudo o que existia dentro destas quatro paredes e quatro andares. O andar térreo é dedicado a duas áreas principais, a receção e a biblioteca, e logo aí se percebe a toada da decoração que Isabel Sá Nogueira (a decoradora que costuma trabalhar com o grupo) quis dar à casa: vermelho forte nas carpetes, madeiras escuras, laranja suave nas paredes e uns apontamentos ora brancos ora brilhantes.
A família Campos Navarro foi sempre adepta das artes, em particular da literatura, tendo por diversas vezes abraçado o mecenato de artistas e escritores. Tendo isso em conta, e já que num dos salões havia embutido no teto trabalhado bustos de Luís de Camões, Alexandre Herculano, Aquilino Ribeiro e Almeida Garrett, escolheu-se a temática da literatura como ponto de partida para o conceito decorativo. Não estranhe por isso se quando aqui passar ficar na suite David Mourão Ferreira ou no quarto Eça de Queiroz — todas as 24 divisões têm nomes de escritores (à semelhança do que acontece no “irmão mais velho” Torel Avant Garde, também portuense, onde os quartos têm nomes de designers famosos).
Subindo ao segundo andar percebe-se o porquê deste projeto ter demorado tanto tempo a ser concluído. O processo de compra do palácio terá sido iniciado algures em 2015, já algum tempo depois do Instituto Comercial do Porto e o Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto terem deixado esta localização. Nessa altura não havia aqui nada sem ser um edifício fechado e poeirento que, tirando alguns pormenores como a claraboia (já lá chegaremos), por exemplo, poucos danos apresentava — felizmente, o contraplacado branco que forrava as paredes não destruiu os frescos que nelas moravam.
As obras de transformação, feitas em estreita proximidade com o Museu do Estuque, arrancaram um ano mais tarde, em 2016, altura em que a data prevista de abertura situava-se algures no final de 2017. Esse prazo resvalou e só a 12 de fevereiro de 2020 é que receberam os primeiros hóspedes. Acontece que como em qualquer projeto deste género — que trata com edifícios muito antigos e sujeitos a leis de preservação de património –, os desafios foram aparecendo uns atrás dos outros. O mais recente e dramático foi mesmo a pandemia do novo coronavírus que forçou o encerramento do projeto pouco tempo depois de ter inaugurado.
Todos os frescos tiveram de ser retocados assim como os tetos extensivamente trabalhados, tudo sempre feito à mão. Algumas zonas recuperadas exigiram um trabalho tão minucioso que quadrados de dez por dez centímetros chegaram a demorar um dia a reformular. É possível ver em todas as paredes, também, que houve uma tentativa de imitar a mármore com recurso à pintura, os tais frescos. Muitos são ainda originais, até dá para ver pelos retoques aquilo que já lá estava e o que foi adicionado.
O objetivo principal da requalificação e transformação desta unidade hoteleira foi claro desde o princípio: preservar ao máximo a identidade que a família Campos Navarro lhe tinha dado. Essa árdua missão também se fez com a vontade de respeitar, por exemplo, a organização inicial que havia sido dada às divisões desta antiga casa de família. Inicialmente o piso térreo era onde morava a cozinha e se recebiam os convidados — isso mantém-se. No primeiro andar moravam os grandes salões, as maiores divisões do palácio, e nesta nova vida enquanto boutique hotel respeitou-se o seu tamanho e é por isso que agora aqui se encontram as suites mais espaçosas. Subindo mais um andar encontraríamos, primeiro, os quartos da família, e depois, no último piso, os quartos dos serventes — continuam todos a existir da mesma forma, agora como sofisticados quartos de hotel onde o estilo clássico de influências românticas convive com toques de modernidade (três suites do último andar, por exemplo, têm tetos de vidro na zona por cima dos chuveiros).
No total foram precisos dois anos de detalhadas obras para dar nova vida ao “tesouro” que a família de mercadores portuenses criou do zero. De todo esse trabalho, aquele que foi dedicado à estrela deste palacete, a gigantesca claraboia que ilumina todo o interior, foi dos elementos que mais atenção exigiu. Quando o edifício chegou às mãos deste grupo hoteleiro o enorme óculo de vidro que coroa o palacete estava longe do seu melhor estado. Parcialmente destruído, exigiu um enorme trabalho de recuperação, tudo feito manualmente, para devolver aos seus oito painéis o brilho de outros tempos. Enquanto quatro desses painéis apresentam apenas um intrincado novelo floral, os outros quatro homenageiam aquilo que a família Campos Navarro mais valorizava através da mitologia da antiguidade: a representação de Mercúrio, o deus romano do Comércio; uma alegoria à Indústria; Minerva, a deusa das Artes e da Ciência; e ainda uma outra alegoria à navegação marítima, à altura o meio privilegiado de transporte de mercadorias.
Misturar o velho com o novo sem um engolir o outro é sempre um desafio e os responsáveis por este Torel Palace sabem-no bem — toda a instalação elétrica, por exemplo, teve de ser feita por dentro do chão em vez das paredes para preservar os frescos originais. Neste caso específico, porém, essa mistura resultou num projeto sofisticado onde trabalhos em estuque com vários séculos coabitam com confortos de século XXI, como uma sala de wellness e uma piscina aquecida exterior. Apesar do projeto ainda não ter data oficial de reabertura ao público, seria sempre de lamentar se um bom exemplo desta junção não voltasse a ter a vida e as pessoas que merece. É esperar para ver.
O projeto em números
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Área: 2.200 m²
Ano de finalização: 2020
Período de construção: 3 anos
Detalhe: O espaço está repleto de frescos centenários que tiveram todos de ser retocados à mão antes da abertura oficial do hotel
Arquitetos: NN Arquitectura
“Portfólio” é uma viagem ao pormenor dos ambientes, espaços e projetos mais inspiradores.