Chegou pontualmente às 16h à Casa da Imprensa, em Lisboa, sozinha, para fazer o anúncio que se esperava: “A liberdade e a democracia são dois temas que me trazem aqui hoje, a declarar-me candidata às próximas eleições presidenciais”. Na audiência, apenas jornalistas, que não tiveram de esperar nem um minuto para a ex-eurodeputada socialista arrasar o seu próprio partido, o PS, que a deixou a falar sozinha quando fez saber que estava a ponderar avançar, e quando anunciou que a decisão estava tomada. Ana Gomes elogiou Marcelo, elogiou Marisa e não referiu aquele-cujo-nome-não-pode-ser-pronunciado, André Ventura, mas deixou claro que daqui até janeiro vai procurar mostrar que é possível mudar o sistema por dentro, sem ser preciso haver “falsos profetas” e “forças anti-democratas oportunistas”.

Mas, primeiro, o PS. “Devo dizer que não contava. Durante meses e meses esperei que o meu próprio, o Partido Socialista, apresentasse um candidato próprio, saído das suas fileiras ou da sua área política. Não compreendo nem aceito a desvalorização de um ato tão significante como a eleição para a Presidência da República”, disse.

E continuou, descrevendo a importância do cargo e da eleição nos dias que correm: “Como pode o socialismo democrático não participar nesta eleição? Como pode dispensar-se de estar genuinamente representado numa competição democrática para o mais alto cargo do país?”. Ainda para mais, explicou, fazê-lo (ou não o fazer) numa altura em que “vivemos tempos estranhos” de grave crise económica e social, assim como de crise ambiental e de caráter global, e numa altura em que, aliado a tudo isto, “sabemos que há forças anti-democráticas a espreitar oportunisticamente”.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Tudo isso são motivos para avançar. Mas o principal deles, diria Ana Gomes quando questionada sobre o porquê de avançar com uma candidatura própria quando é a primeira a fazer um “balanço positivo” do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa e a elogiar a “amiga” Marisa Matias, é o facto de haver um espaço vazio na ala socialista que, no seu entender tem de ser ocupado. “Esse campo não pode desertar num combate que é tão importante num momento em que vemos a democracia em regressão”, disse.

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Ou seja, porquê avançar? “Porque penso que, pelo meu percurso pessoal e político, represento o campo do socialismo democrático em que, neste momento, não se perspetiva nenhuma candidatura, atendendo ao que têm dito dirigentes do meu partido”, respondeu. A crítica ao PS — ou o sentimento de desilusão perante o seu partido — esteve sempre presente no discurso da agora candidata a Belém, que admite que não falou com António Costa para dar conta da sua reflexão. “Falaria se o PS já tivesse um candidato”, disse.

PS deixa Ana Gomes a falar sozinha. Socialistas cumprem “recato” pedido por Costa

“Muitas e muitas” mensagens de militantes do PS, incluindo dirigentes atuais

Depois das críticas ao PS, dirigidas implicitamente à pessoa de António Costa, que protagonizou o famoso momento “Autoeuropa” em que estendeu o tapete a uma recandidatura de Marcelo, Ana Gomes não quis ficar a falar sozinha e deixou claro que tem sentido o apoio de “muitos” militantes do PS, desde que tornou pública a sua intenção de avançar com uma candidatura. E deixou claro, com ironia, que o PS ainda terá de fazer o debate interno sobre o tema, sendo que nem lhe passaria pela cabeça que os militantes socialistas “não soubessem pensar pela sua própria cabeça”.

“Tenho recebido muitas e muitas mensagens de apoio e de encorajamento de militantes do PS para apresentar a minha candidatura e para me candidatar”, disse em resposta aos jornalistas, especificando depois de essas mesmas mensagens têm chegado “de todos os níveis” de militância, “incluindo de dirigentes atuais do PS”. Mas não detalhou mais.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Sobre Marisa Matias, e sobre a eventual divisão que as duas candidaturas poderão criar entre o eleitorado da esquerda, sob pena de isso beneficiar candidaturas mais extremadas à direita, Ana Gomes recusou dizer se equaciona desistir em nome da candidata do Bloco de Esquerda ou vice-versa. “Ainda agora estamos a lançar as candidaturas e já estamos a falar de desistir?”, questionou, depois de ter elogiado em toda a linha a eurodeputada bloquista: “Uma excelente candidata, é uma amiga e tenho a certeza de que faremos ambas campanhas com elevação e norteadas por ideias e projetos”. Objetivo: unir e federar, não dividir.

Se para Marisa tinha elogios, para Marcelo idem. “Faço um balanço positivo do primeiro mandato do governo de António Costa e para que foi muito importante também a intervenção do Presidente da República. Faço um balanço positivo do mandato do presidente Marcelo Rebelo de Sousa desde logo pela descrispação que ele introduziu numa sociedade que estava muito crispada, até pela personalidade do anterior Presidente da República”, disse, sublinhando que não vai fazer uma campanha pela negativa, “contra ninguém”, mas sim pela positiva, “por um projeto de futuro, por ideias de um país mais justo e melhor, e pela ambição de pôr os portugueses a debater os desígnios do futuro”. Para André Ventura, que disse que se demitia se ficasse atrás de Ana Gomes na corrida, nem uma palavra. Apenas indiretas contra “os falsos profetas” e as “forças anti-democráticas oportunistas”.

Uma candidatura “aberta”, pela “democracia” e “livre”

Apesar de afirmar que não se candidata contra ninguém mas a favor do país, há um adversário claro nas palavras de Ana Gomes: as forças anti-sistema que querem derrubar a democracia. Para Ana Gomes, é possível combater o sistema instalado dentro da democracia e é aí que entende ter um papel.

“Não podemos continuar a deixar empurrar cidadãos para as margens, enredados na conversa de falsos profetas ou na letargia da abstenção. Milhares e milhares de portugueses desiludidos, que foram deixados para trás pela crise, pelo desemprego, pela doença, pela pobreza ou pela exclusão, têm de voltar a acreditar que a democracia vale a pena, que só em democracia e com solidariedade poderá haver esperança”, disse.

Para isso assume-se como a candidata da “transparência”, da “independência”, que “não tem medo de ir contra interesses instalados”, e que é “livre de compadrios e de comprometimentos”.

Ou seja, mudar, sim, mas por dentro. E não se aproveitar das fragilidades da população para fragilizar a democracia. Para isso, e como o PS está a assobiar para o lado, Ana Gomes diz que a sua candidatura será “aberta a militantes de todos os partidos democráticas e a todas as pessoas que, não tendo atividade política, se identificam com as causas que defende”.