Depois de cinco anos arrumada em caixotes, a biblioteca pessoal de Alberto Manguel encontrou finalmente uma casa. O protocolo que formalizou a doação dos quase 40 mil títulos à cidade de Lisboa, que possibilitará a criação numa data ainda a revelar do Centro de Estudos da História da Leitura, foi assinado este sábado, no Pavilhão Carlos Lopes, junto à Feira do Livro, lugar escolhido a dedo pela a autarquia para dizer “que esta biblioteca passa a ter um lugar central na geografia cultural, literária e artística da nossa cidade”, afirmou Fernando Medina. Num gesto simbólico, Manguel deixou dois dos seus livros mais queridos.

Construída ao longo de várias décadas, em diferentes tempos e lugares, a biblioteca de Alberto Manguel esteve instalada durante 15 anos num antigo presbitério numa pequena aldeia no Vale do Loire, em França. Durante esse tempo, ganhou fama e tornou-se numa das “bibliotecas privadas mais famosas do mundo, pelo que contém e pelo que simboliza”, apontou o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, descrevendo-a como “a figura de uma biblioteca ideal e total”.

Em 2015, quando Manguel foi convidado para dar aulas nas universidades de Columbia e Princeton e se mudou para Nova Iorque, o leitor e tradutor foi obrigado a se dedicar à difícil tarefa de desmantelar a sua biblioteca e de colocar os seus milhares de livros em caixas. Descreveu essa experiência dolorosa no livro Embalando a Minha Biblioteca, publicado em Portugal em 2018.

Em outubro do ano passado, em entrevista ao Observador, Manguel revelou que a sua biblioteca permanecia guardada à espera que “alguém” tivesse a ideia de pegar nela “e montá-la outra vez”. Sem ela, o leitor argentino dizia sentir-se como um refugiado que é obrigado a deixar tudo para trás e construir uma nova vida num novo país. Em Lisboa, onde passará a residir, não terá de estar outra vez longe dos seus livros — Fernando Medina prometeu-lhe que poderá consultá-los sempre e quando quiser.

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“Na cerimónia de casamento na Argentina, é costume dizer ao pai da noiva: ‘Não vai perder uma filha, vai ganhar um filho’. Hoje digo a mim mesmo: ‘Não vais perder uma biblioteca, vais ganhar uma cidade mágica”, disse o escritor, em português (“Estas palavras não são minhas, são da minha tradutora, Madalena Alfaia”), após a assinatura do protocolo, revelando que a sua “amizade” com Lisboa “dura há várias décadas”. “Ao longo dos anos, visitei a cidade muitas vezes a convite de vários instituições para dar palestras ou assistir a seminários, circunstâncias que tomei sempre como um pretexto feliz para revisitar Lisboa e prosseguir a nossa conversa num tom que costumo chamar ‘lisboano’ — tranquilo, civilizado, despretensioso, idêntico.”

[Vídeo da assinatura do protocolo para a instalação da biblioteca de Alberto Manguel em Lisboa, no Pavilhão Carlos Lopes:]

Biblioteca “continuará a ser enriquecida e aumentada com novas aquisições e doações”

Foi por isso com grande alegria que o leitor e tradutor argentino recebeu o convite de Fernando Medina (que Manguel descreveu como uma criatura “tão rara quanto um unicórnio” por ser um “político atencioso”) para trazer a sua biblioteca para Lisboa, onde ficará instalada no Palácio dos Marqueses de Pombal, na Rua das Janelas Verdes. Uma vez desempacotada, “continuará a ser enriquecida e aumentada com novas aquisições e doações e será pretexto, motivo, impulso, para descobertas, criações, exposições, projetos literários, campanhas artísticas, filmes”, entre outras iniciativas”, descreveu o presidente da câmara sem, porém, revelar datas de abertura.

Será também no palacete das Janelas Verdes que funcionará um centro de investigação dedicado à história da leitura, “tema ao qual Manguel tem dedicado a sua vida e uma grande parte da sua obra”, disse Medina. “Será o próprio autor que dirigirá esse centro, pois a partir de agora ficará a residir na nossa cidade.” O conselho honorário do Centro de Estudos da História da Leitura contará com escritores como a polaca Olga Tokarczuk, Prémio Nobel da Literatura em 2018, a canadiana Margaret Atwood ou o britânico de origem indiana Salman Rushdie, refletindo “a qualidade, a variedade, a pluralidade e o cosmopolitismo sem os quais o século XXI se poderá tornar um desastre, uma regressão ou mesmo uma tragédia”, afirmou ainda o autarca.

Num breve vídeo exibido durante a sessão deste sábado, Salman Rushdie parabenizou Lisboa, cidade onde já esteve várias vezes, pela iniciativa. “A sua biblioteca [de Manguel] é uma das maravilhas do mundo. É uma das maiores bibliotecas privadas e ter uma casa em Lisboa é uma coisa maravilhosa, porque é necessária e porque merece”, afirmou o autor, descrevendo Alberto Manguel como “uma biblioteca” porque “carrega uma biblioteca na sua cabeça”. “Tenho de vos dar os parabéns porque adquiriram duas bibliotecas pelo preço de uma, uma humana e uma com livros”, brincou. Também Margaret Atwood deixou os parabéns à autarquia num curto vídeo.

“Sinto-me orgulhoso e feliz ao dar a minha biblioteca de muitos milhares de livros a Lisboa, uma cidade que, nesta época de insanidade universal, mesmo sabendo que nenhum lugar na terra é uma utopia perfeita, de certa forma se tornou num refugio para o diálogo civilizado e a dignificada resistência”, afirmou Alberto Manguel, admitindo que é bom saber que a sua biblioteca “vai finalmente ter uma casa depois de ter esperado tanto tempo dentro de caixotes”.

A biblioteca de Alberto Manguel explicava quem ele era

Manguel inicia doação com dois livros que lhe são “particularmente queridos”

Durante a sessão deste sábado, Alberto Manguel deu simbolicamente início à doação da sua biblioteca com dois livros que lhe “são particularmente queridos” — uma Bíblia manuscrita do século XII, com várias iluminuras, e uma encadernação mais tardia, do século XVI; e um volume da enciclopédia Labor, publicada em Barcelona em 1928. Em relação a este último, Manguel disse não se tratar de “um livro com especial valor”. “Contudo, traz no anterrosto a assinatura de seu proprietário, Jorge Luis Borges, e a data ‘Buenos Aires, 1934’.” Por baixo, surgem duas notas manuscritas, “compondo a estrutura completa do famoso conto ‘A Busca de Averroes”, que Borges escreveria mais tarde e publicaria em 1949, na coletânea O Aleph.

Manguel conheceu Borges, autor já consagrado, quando tinha 16 anos, numa livraria em Buenos Aires, a Pygmalione. Durante quatro anos, entre 1964 e 1968, passou os serões em casa do escritor, praticamente cego, lendo para ele. As memórias dessas noites enchem as páginas do mais seu recente livro, Com Borges, publicado em junho em Portugal, pela Tinta-da-China. O livro esteve para ser apresentado este sábado, na Feira do Livro de Lisboa, mas o evento foi adiado por o horário coincidir com o da assinatura do protocolo de doação, que aconteceu pelas 18h.