“O Unicórnio olhou incrédulo para Alice, e pediu-lhe:

— Fala, menina.

Alice não pôde evitar um sorriso, ao dizer:

— Sabes, eu também pensava que os Unicórnios eram monstros fabulosos! Nunca tinha visto um vivo!

— Bem, agora já nos vimos um ao outro — constatou o Unicórnio. Se acreditares em mim, eu acredito em ti. De acordo?”

É este estranho diálogo entre Alice e o Unicórnio, em Alice do Outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll, que abre o novo livro do Alberto Manguel. A conversa serve para explicar o título que o argentino escolheu para o seu mais recente ensaio, em que explora a vida de 38 “monstros fabulosos”, desde o Drácula ao Super-Homem, passando naturalmente pela Alice do País das Maravilhas, o capitão Nemo, Robinson Crusoe ou o Mandarim, da novela com o mesmo nome de Eça de Queiroz. Ainda que em Monstros Fabulosos existam personagens fantásticas e verdadeiramente monstruosas como a Quimera, o Hipogrifo e o monstro do Dr. Frankenstein, a maioria não tem corpo de animal ou um apetite voraz por carne humana. Os monstros de Alberto Manguel são aqueles que não são de carne e osso, que são de toda a parte e que lhe povoam a imaginação desde que, em pequeno, começou a construir a sua gigantesca biblioteca, atualmente com cerca de 40 mil livros.

Essa biblioteca está hoje encerrada em caixas e mais caixas de cartão, desde que Manguel teve de vender a casa onde vivia numa “pacata aldeia francesa” e se mudou para Nova Iorque, para um apartamento do tamanho de uma mesa e onde os seus livros não cabem. A desoladora experiência de desmantelar a sua biblioteca, instalada num antigo presbitério no Vale do Loire, surge descrita no seu livro anterior. Embalando a Minha Biblioteca foi publicado no ano passado, mas a dor de ter de deixar os seus livros continua tão presente como antes. Em entrevista ao Observador, a propósito do lançamento de Monstros Fabulosos em Portugal, Alberto Manguel comparou a experiência com a do refugiado que tem de deixar tudo para trás e começar uma vida nova: “Os refugiados que têm de deixar o seu país deixam para trás os seus objetos, os seus livros, os seus amigos, tudo, e têm de construir uma nova vida com o que conseguem levar. Não estou num campo de refugiados, estou num bom apartamento em Nova Iorque, mas a perda é a mesma”.

O último livro de Alberto Manguel chegou às livrarias a 27 de outubro. A edição é da Tinta-da-China, responsável pela publicação do autor em Portugal

O seu último livro fala de monstros fabulosos, mas algumas das personagens não exatamente monstros. No primeiro capítulo, por exemplo, fala de Monsieur Bouvary. O que são então, para si, monstros fabulosos?
A palavra “monstro” tem muitos significados, mas tirei o título do livro da conversa que a Alice tem com o Unicórnio, que está na primeira página. Ela conhece o Unicórnio, o Unicórnio conhece a Alice e diz-lhe: “Isto é incrível! Sempre pensei que as meninas fosse monstros fabulosos!”. E a Alice diz: “Sabes, também pensava que os unicórnios eram monstros fabulosos!”. E o Unicórnio diz [a seguir]: “Vamos fazer um acordo. Se acreditares em mim, eu acredito em ti”. É daí que vem o título. Não uso a palavra “monstros” no sentido de uma coisa horrível e desumana, uso-a no sentido de uma coisa que não é de carne e osso, que não é real no sentido que damos a essa palavra. Esses são os meus monstros fabulosos.

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Algumas das personagens que escolheu não são personagens principais. É o caso de Monsieur Bouvary, de que falei há pouco, mas também da mãe de Hamlet, Gertrudes.
Era importante para mim [que assim fosse]. Se uma personagem é a protagonista do livro, não significa que seja a personagem pela qual nos apaixonamos. Nem sequer significa que é a personagem de que nos lembramos melhor. Existem personagens menores em muitas obras de ficção que são inesquecíveis para a audiência. Não para todas, porque cada leitor faz as suas próprias escolhas. Nalguns casos, é a personagem principal [que nos fica na cabeça], como acontece em O Mandarim, de Eça de Queiroz, onde é obviamente o Mandarim, porque o narrador não é muito interessante. No caso de Hamlet [de William Shakespeare], Gertrudes, a sua mãe, é uma das personagens mais interessantes, porque tem de ser testemunha [do que se passa] mas, enquanto mulher, não pode propriamente tomar parte na ação.

No livro, diz que o fantasma de Gertrudes é o único que é real.
Sim, é o que sinto, porque o pai de Hamlet é uma aparição que desencadeia a ação, as personagens que morrem e a pilha de cadáveres no final têm uma presença filosófica, uma presença emocional, mas Gertrudes é um mistério e, por essa razão, está mais viva do que as outras personagens. Não existe solução para ela.

Acha que ela é mais misteriosa do que Ofélia?
Sim, acho que sim. Tenho pena de Ofélia, porque se afoga e tudo isso, mas ela é um bocadinho maluquinha. Hamlet tem obviamente um problema e ela devia ter a coragem e a força para dizer: “OK, olha, já chega. Ou temos uma relação ou não temos uma relação. E se não temos, está tudo bem, mas então para de me chatear”. Mas, claro, enquanto mulher, na corte, etc., não tem poder, mas podia ter feito uma escolha. Uma personagem como Jane Eyre [do romance homónimo de Charlotte Brontë], que admiro muitíssimo, é muito forte nos seus próprios termos. Até quando está sob a domínio das circunstâncias ou de homens ou mulheres que querem mandar nela, faz o que quer fazer, até onde consegue. Ofélia não. Ofélia é fraca, obedece ao pai e a este idiota que é o Hamlet.

Gosta mais de Jane Eyre do que de Catherine, de O Monte dos Vendavais?
Sim, sim, sim. Catherine é um bocadinho como Ofélia, parece-me demasiado fraca. Jane Eyre é uma das personagens mais corajosas e confiantes que conheço.

Acha que é mais corajosa do que Catherine?
Sim, porque Catherine fá-lo pelo seu amor. Jane Eyre faz o que faz por ela própria. E, no final, quando tem de se reunir com Rochester, diz que, “porque sou a mulher que queria ser, agora podemos ter um relacionamento”. Isso é muito poderoso.

Falámos há pouco de Shakespeare. Qual é a sua opinião sobre o dramaturgo inglês? Harold Bloom, que morreu há muito pouco tempo, achava que Shakespeare era o maior autor de todos os tempos.
Bem, isso é discutível. Mas, claro, Shakespeare é o génio que criou tantas personagens, inventou tantos enredos, fez teatro tão extraordinário. No entanto, sabemos muito pouco sobre ele. Shakespeare, enquanto personagem, interessa-me menos do que as suas personagens. Há uma peça muito boa sobre Shakespeare que o mostra como um cobrador de impostos muito mesquinho, sem interesse nenhum. Acho que pode ter sido verdade. Temos a ideia de que os escritores que criaram personagens maravilhosas e que propuseram histórias muito éticas que mudaram as nossas vidas são, eles próprios, personagens éticas. Não, muitas vezes são pessoas horrorosas, mas tiveram a inspiração de por alguma coisa no papel que era tão melhor do que eles próprios.

E são muitas vezes pessoas muito desinteressantes.
Sim. Dante era um homem muito orgulhoso e frio, Céline era antissemita… O que é maravilhoso na literatura é que não nos obriga a tornarmo-nos amigos dos pais das personagens pelas quais nos apaixonamos. Gostamos de pensar que, se estivermos num relacionamento com alguém que escolhemos e de quem gostamos, temos de conviver com os pais dessa pessoa e, às vezes, esses pais são pessoas horrorosas com quem não nos queremos dar. O mesmo acontece com as personagens dos livros.

Alberto Manguel nasceu em Buenos Aires, em 1948, e cresceu entre a Argentina e Israel. Atualmente, vive em Nova Iorque, onde dá aulas em duas universidades

Cada paraíso tem a sua serpente, da luz nasce sempre a sombra

Como é que selecionou as personagens de que fala neste livro?
Não as escolhi propriamente, são tantas… Comecei por fazer uma lista de cerca de 200 e, depois de ter escrito sobre algumas, pensei em fazer, por exemplo, o Mandarim para a Tinta-da-China, [Dona] Emília [do Sítio do Picapau Amarelo] para o meu editor no Brasil e Karagöz e Hacibat para o meu editor turco, e por aí em diante. Apenas como presente. Mas são personagens que são muito importantes para mim. Não quis que fossem todas do cânone ocidental tradicional, porque não é assim que leio. Leio tantas coisas diferentes, e há personagens [no cânone] de que não gosto e romances de que não gosto, mesmo sabendo que são muito, muito bons.

Escreveu sobre alguma personagem de que não gostava por saber que era importante?
Não, não me daria a esse trabalho. Por exemplo, não gosto muito de Jane Austen, não estou muito interessado nas suas personagens, e isso é um sacrilégio. Stendhal não é um dos meus escritores favoritos. Sei que ele é extraordinário, que tem um estilo maravilhoso. Mathilde de la Mole [personagem de O Vermelho e o Negro] não me interessa.

Falou de Dante. Ele está muito presente neste livro, como já tinha estado noutros, sobretudo em Uma História da Curiosidade, onde é uma espécie de guia do leitor. É evidente a admiração que tem pela Divina Comédia.
É o meu livro. Descobri-o há uns 15 anos e lei-o todos os dias e todos os dias descubro alguma coisa diferente e interessante. É um milagre, acho que não há nada como ele, que tenha esta riqueza e profundidade perfeitas. Mas isso é para mim!

Parece encontrar todas as respostas de que precisa na Divina Comédia.
[Risos] Encontro as perguntas de que preciso. A diferença entre catecismo e literatura é que o catecismo dá-nos respostas e a literatura dá-nos perguntas.

Faz-nos pensar sobre as coisas?
Apresenta-nos questões. Depois fazemos o que entendermos com elas. Podemos deixá-las de lado ou podemos meditar sobre elas.

Escreveu um livro sobre monstros numa altura de monstros. Pensou nisso enquanto o escrevia?
Os monstros que existem são de outro tipo, são personagens que apareceram em tantas sociedades como destruidores daquilo que nos torna humanos. Num sentido muito profundo, acho que são uma espécie de exército que quer que cometamos um suicídio coletivo. Apareceram em todos os países e acho que criámos as condições para isso. Há uma coisa que aprendemos com a ficção que é, quando uma personagem considera o mundo de forma honesta, como o Idiota de Dostóievski, essa personagem, na sua honestidade, permite que toda a gente ocupe o seu lugar. Não são apenas as personagens que querem tornar as coisas melhores, que sentem empatia pelos outros, que têm o seu lugar, mas também os destruidores. Todo o paraíso tem a sua serpente — não pode existir sem uma serpente. Tem de haver uma sombra para a luz. Mas isso é o que permite o perigo de destruição desse paraíso. Dante — se voltarmos mais uma vez a Dante — sabe isso. No Purgatório, num dos primeiros momentos, quando encontram as almas e o sol se pôs e não podem continuar a viajar, porque não podem avançar quando o sol se põe, não se pode pecar mais, não há o perigo de se ser tentado pelo pecado. No entanto, a serpente continua lá, como lembrete de que um lugar não pode existir sem ela. A nossa sociedade sempre teve isso. Por exemplo, quando a América se dirigiu para o liberalismo com o Obama, abriu espaço para o Trump.

Não é possível haver um equilíbrio?
O problema é que a serpente consegue aguentar tanto peso que tudo o resto é destruído.

Vê um futuro negro?
É muito nova e eu sou muito velho e acho que, com a idade, surge uma certa perda de confiança em relação àquilo que podemos alcançar. Esta época é particularmente marcada por isso porque, não os filósofos, mas os cientistas, disseram que temos de mudar a partir de determinada data ou já não será possível. É como dizer que podemos caminhar até ao precipício mas, se dermos mais um passo, iremos cair. É um facto científico. Demos esse passo. Quanto tempo vai demorar a queda, não sabemos. Esperemos que demore muito tempo, mas os cientistas disseram que é o suficiente para a temperatura do mar subir um ou dois graus e para perdermos a vida nos mares e a nossa vida enquanto espécie no processo. Obrigo-me a ter alguma esperança, porque tenho duas netas pequenas. Não posso conceber que elas tenham de tentar sobreviver num mundo que está a acabar mas, em concreto, não vejo nenhuma indicação da existência de uma vontade de mudança. Nos Estados Unidos, por exemplo, com a reversão do Trump das leis ecológicas do Obama, desde 2016, as emissões de dióxido de carbono aumentaram muito. Não só não resolvemos o problema, como o tornámos ainda pior. Digo nós, porque somos todos responsáveis.

Na Feira do Livro de Frankfurt, que terminou há pouco tempo, houve uma grande procura por livros sobre a questão ambiental.
Se queremos cometer suicídio, queremos ler sobre os melhores punhais, os melhores venenos.

O escritor argentino foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina entre 2016 e 2018

O mundo pode acabar, mas os livros viverão para sempre

Como é que vê o futuro dos livros tendo em conta o lugar para onde a humanidade está a caminhar?
A primeira pergunta que devemos fazer é se haverá um futuro. Ray Bradbury tem uma história maravilhosa chamada “There Will Come Soft Rains”, que é uma citação de um poema [de Sara Teasdale]. Ele descreve uma casa no futuro, que é toda mecânica como as nossas Alexas. Tem uma voz que anuncia que o pequeno-almoço está servido, há um pequeno robô que faz as limpezas. Funciona assim. No final [do conto], é noite, e a casa diz: “Mrs. Smith, gosta de poesia. Que poema gostaria que lesse?”. Quando não há resposta, a casa diz que vai selecionar um dos seus favoritos e lê o poema [de Sara Teasdale]. E depois, no fim, percebemos que ninguém está vivo e que a casa continua a funcionar. Houve uma catástrofe, uma guerra atómica ou algo do género, e as pessoas morreram, desapareceram. Depois de desaparecermos, os livros e as bibliotecas vão continuar e toda esta informação que está na Internet vai continuar a circular, mas não haverá ninguém para a ler. Se estou esperançoso, estou-o porque a literatura tenta dizer-nos para sermos esperançosos e porque existem monstros fabulosos que nos ensinam a ser esperançosos. Montag, o herói de Fahrenheit 451, encontra pessoas que arranjaram forma de preservar os livros quando estes estavam a ser queimados ao memorizá-los. Existem muitas histórias sobre sobrevivência depois do apocalipse acontecer. Margaret Atwood descreve na trilogia MaddAddam um mundo pós-apocalíptico, mas isso é talvez dizer que vamos conseguir sobreviver se tornámos as coisas melhores. Mas, para isso, não podemos esperar um segundo. Temos de convencer as pessoas a fazerem o contrário em todos os minutos. Isso não está a acontecer à velocidade necessária.

E que lugar terão as bibliotecas nesse futuro?
Mais uma vez, temos de pensar se vamos sobreviver quando colocamos qualquer pergunta sobre o futuro. Se sobrevivermos, as bibliotecas serão aquilo que sempre foram. As bibliotecas adaptam-se a qualquer tecnologia, incorporam os textos e as imagens preservadas em qualquer plataforma inventada, são omnívoras, não rejeitam nada, e estão constantemente a proporem uma imagem da identidade da sociedade que as suporta. Se quiser saber como é uma determinada sociedade, olhe para a forma como trata as suas bibliotecas, olhe para a posição que a biblioteca tem. A biblioteca é a memória dessa sociedade e tem de encontrar formas de se adaptar ao uso que os cidadãos fazem da tecnologia para preservar a memória. Por exemplo, quando começámos a escrever no barro em cuneiforme ou, mais tarde, em pedra e papiro, era uma forma de preservar a nossa memória, de dizer “vou lembrar-me disso”, mas também que as pessoas se vão lembrar disto, porque ficou escrito. A tecnologia de hoje, apesar de aguentar mais memória do que antes, é, ao mesmo tempo, muito negligente na forma como a preserva. À medida que a tecnologia eletrónica muda, existem documentos que se perdem, porque a tecnologia muda tão rapidamente que já não temos os meios para recuperar o que foi colocado num disco rígido há 15 anos, por exemplo. Então temos de ter cuidado com isso. As bibliotecas tentam preservar isso. As bibliotecas preservaram a biografia dos livros. Por exemplo, podemos ver um manuscrito de [Fernando] Pessoa, as palavras rasuradas, as mudanças, como um livro apareceu e como ele depois o corrigiu, o mudou. Isso é a vida do livro. A tecnologia eletrónica acabou com isso. Quando era diretor da Biblioteca Nacional [da Argentina], uma das questões mais difíceis que surgiu era como ter arquivos de jovens escritores, porque poucas pessoas desta geração preservam os vários rascunhos, simplesmente mudam-nos. O rascunho final, o que foi enviado para a impressora, para os amigos, é a única coisa que o arquivo pode ter. As primeiras ideias, as formas de contar a história, as alterações feitas, porque foram feitas, tudo desapareceu. Uma das coisas que tentei fazer foi encontrar um programa que permitisse aos escritores preservarem de forma muito fácil o que mudaram, mas é difícil convencê-los a fazerem isso. Muitos são demasiado preguiçosos, não querem carregar no botão. Do ano 2000 para a frente, as bibliotecas não vão ter os arquivos da literatura que está a ser criada.

Isso significa que a forma como estudamos um livro vai mudar?
Há coisas que vão permanecer iguais, porque vamos continuar a poder estudar uma personagem, uma história ou um estilo, mas não vai ser possível dizer que, quando Shakespeare começou a escrever o Rei Lear, não havia um bobo. A companhia [de teatro] tinha um bom ator que podia interpretar o bobo, então ele introduziu-o. Como era um homem com feições femininas, que costumava desempenhar papéis de mulheres, também interpretava o papel de Cordélia. Se olhar para a peça, Cordélia e o bobo nunca aparecem na mesma cena. Se não conhecermos a história da peça, somos simplesmente confrontados com o texto final. No caso de Shakespeare, temos muitas versões de Hamlet, por exemplo. Não escritas pela mão dele, como é óbvio.

Em Embalando a Minha Biblioteca, o seu livro anterior, disse que não gostava muito de bibliotecas públicas, porque não podia levar os livros consigo.
Adoro bibliotecas públicas, mas não consigo trabalhar nelas. Não posso levar o livro comigo, porque não posso tomar notas, não posso rabiscar, não posso colocar papéis lá dentro.

E como está a sua biblioteca?
A minha biblioteca continua enterrada em caixas.

O que é muito triste.
Sim, é muito triste. Forçou-me a trabalhar de outra forma. É interessante porque, nesta época de uma tecnologia que propõem uma memória maior, descobri que, porque costumava trabalhar com os livros da minha biblioteca e agora não os tenho, trabalho com a minha própria memória. Em vez de ter a memória da biblioteca ou a visão tecnológica, tenho de trabalhar com o que me lembro e com o que associo na minha cabeça. É uma maneira diferente de trabalhar e uma maneira diferente de lidar com a memória. Gosto disso, porque apercebi-me que com o exercício, como quando exercitamos qualquer músculo, a minha memória fortaleceu-se, ficou muito melhor. Mas tenho saudade dos meus livros.

Porque é que teve de a desmantelar?
Deixámos França, vendemos a casa e mudámo-nos para Nova Iorque, onde fui convidado para dar aulas nas universidades de Columbia e Princeton. E, em Nova Iorque, não é possível ter uma casa grande ou uma casa grande o suficiente para ter 40 mil livros. Vivo num apartamento do tamanho desta mesa [risos].

Como é que é viver tão longe dos seus livros? Em Monstros Fabulosos, conta que, como o seu pai era diplomata e estava sempre a viajar de um lado para o outro, os seus livros sempre foram o seu porto seguro.
Os refugiados que têm de deixar o seu país deixam para trás os seus objetos, os seus livros, os seus amigos, tudo, e têm de construir uma nova vida com o que conseguem levar. Pelo menos não estou num campo de refugiados, estou num bom apartamento em Nova Iorque, mas a perda é a mesma. Continuo a ter esperança que alguém tenha a ideia de pegar na biblioteca e montá-la outra vez, porque é uma biblioteca sobre a história da leitura, é importante, mas isso ainda não aconteceu.