O economista e professor angolano Jonuel Gonçalves defende que as elites africanas se têm servido de discursos identitários para manter quase inalteradas as políticas coloniais, com consequências no desenvolvimento e no agravar das desigualdades no continente.
“As elites africanas traíram os seus povos e, com base em discursos identitários, mantêm a política colonial“, agravando as desigualdades entre as suas populações, disse Jonuel Gonçalves à agência Lusa, a propósito do lançamento do seu livro “África no Mundo — Livre das Imposturas Identitárias”, que hoje chega às livrarias em Portugal, numa publicação da editora “Guerra e Paz”. “Há apenas uma diferença: mudou a cor do privilegiado”, acrescentou.
Exceção feita a países como as ilhas Maurícias, Cabo Verde ou a Namíbia, o economista defendeu que a generalidade do continente africano “ficou exatamente na mesma” após o período colonial, quando “as economias africanas estavam ao serviço das europeias” numa perspetiva de “extrativismo”. Apesar disso, o escritor sublinhou como positivo o surgimento, no continente, de grandes movimentos de resistência de massas e a criação de muitas organizações não governamentais das quais “os governos têm muito medo”.
“A democracia exige uma base material. Se há muita liberdade e as pessoas continuam pobres, a democracia acaba por sofrer com isso”, disse, apontando o exemplo de Angola, onde, num contexto de maiores liberdades civis, cresce a contestação, sobretudo por parte dos jovens, ao Governo do Presidente João Lourenço. A descapitalização do país, um nível de investimento muito baixo com a paragem de vários setores e a incapacidade de diversificar uma economia baseada quase exclusivamente no petróleo está a levar ao acentuar da degradação das condições de vida das populações. “A juventude está toda crítica em relação ao Governo, o que é positivo em termos de futuro, mas pode ser fator de conflito a curto prazo”, estimou, notando que, dos 54 Estados africanos, 45 vivem situações semelhantes. Jonoel Gonçalves defendeu que “aumentou a liberdade de expressão e a população está a viver pior”.
“África no Mundo — Livre das Imposturas Identitárias”, a quarta obra do economista, é um ensaio sobre “uma África revoltada”, que aponta os perigos dos discursos “tribalistas” do continente, denunciando as teorias étnicas e identitárias como versões “sofisticadas e atuais” dos “velhos” discursos racistas. “A noção de identidades transformou-se no discurso erudito atual que substitui o grande discurso racista”, disse. Para o autor, trata-se de “disfarces ideológicos” que “exacerbam diferenças e separatismos em detrimento das afinidades humanas, servindo projetos ditatoriais”. Jonuel Gonçalves considerou que “é de facto uma grande impostura [falsidade] que acaba por criar uma cultura de ‘gueto’ que afasta África do contacto com o mundo”.
“Claro que as pessoas que falam muito de identidades de ‘guetos’ têm um tipo de vida que nada têm nada a ver com isso. Vestem-se como no ocidente, usam carros ocidentais, vivem em grandes apartamentos, desviam dinheiro. Há esta contradição. O identitário é identitário no discurso, mas não na vida quotidiana”, acrescentou. Em consequência, é o continente que paga as faturas do atraso, da repressão e da subalternidade em relação a outras zonas do globo. Por isso, defendeu o escritor, África tem de se integrar no mundo “em termos de igualdade”, sublinhando a grande contribuição que o continente pode dar para resolver a atual crise da democracia no mundo.
“África é um continente cheio de experiência. Lutar pela democracia em África não é brincadeira, implica risco de vida e as pessoas continuam a lutar e esta é uma área em que é importante inserir África no diálogo mundial”, considerou, notando que “a maior parte das lutas pela democracia no mundo atual passam-se em África”.
Jonuel Gonçalves assinalou também o uso das teorias identitárias pelos grupos de extrema-direita europeus e as suas consequências para africanos e os seus descendentes, alvo de discriminação e a quem são negados direitos de cidadania. “A extrema-direita francesa é quem avança mais, mas a que se está a constituir em Portugal também vai seguir esse caminho”, disse.