Até ao início da tarde desta quinta-feira, Nuno Baltazar nunca tinha assistido a um desfile próprio. São ossos do ofício — o espetáculo invade a passerelle e, se for bom, contagia a audiência, enquanto o lugar do autor continua a ser lá atrás, a assistir a tudo através de um ecrã. Neste caso e ao fim de 22 anos de apresentações regulares, a primeira vez foi tão empolgante como assustadora, ou seja, o designer sofreu com os nervos até à hora de, finalmente, pegar no microfone. O gesto, pouco usual, fez com que as cabeças virassem instantaneamente.
Quis a atual crise pandémica que “Ensaio”, a coleção proposta pelo criador para o verão de 2021, fosse apresentada a céu aberto, em plena luz do dia e com uma coreografia mais ou menos expectável tratando-se o cenário de um lago redondo, no centro de Lisboa. “Vasco, menos laca”, “Isabel, explica às estrangeiras como é que eu quero que elas desfilem” ou “Vamos começar o ensaio, vai ser tudo de seguida, sem interrupções” — coordenado com a própria equipa, de uma ponta do recinto para a outra, é como se as didascálias de uma peça de teatro fossem, afinal, as deixas principais. De encenador invisível, Baltazar foi o ator principal.
“Quando fazes um desfile ao ar livre é impossível não expor algumas coisas. Depois de falarmos em como íamos esconder isto ou aquilo, a conclusão a que chegámos foi mostrar. Fizemos tudo o que se faz nos lugares inacessíveis ao público de uma forma exposta, o que é também uma forma de nos aproximarmos quando não podemos estar tão próximos”, explica o designer ao Observador.
Baltazar não arquitetou o isto sozinho. Amigo de sempre e braço direito neste regresso à montra lisboeta, Dino Alves teve a ideia e apareceu para denunciar o envolvimento. Com uma plateia mascarada e reduzida de um lado e os clientes de uma esplanada do outro, o desfile arrancou disfarçado de ensaio, ao compasso da música, mas também das entradas dadas com o nome de cada modelo. Dos tecidos aos afetos, esta é uma coleção que nasceu do arquivo, em todos os sentidos.
“Há dois anos fiz uma grande doação ao MUDE [Museu do Design e da Moda], por isso acabei por ficar com as coisas menos interessantes. Comecei a olhar para elas e a pensar como é que tinha sido capaz de fazer aquilo”, recorda. A repulsa não era real, apenas o primeiro impulso de uma autocrítica que serviu de base à criação de algo novo. “O que fiz aqui não foi reatualizar trabalho antigo, mas sim olhar para a minha identidade criativa. Não é uma correção do passado, mas uma projeção. Quero andar para a frente e, para isso, tenho de saber o que sou, o que sei fazer, do que gosto e o que fiz mal”, prossegue, minutos após o final do desfile e já abrigado do calor tórrido da tarde.
Os trejeitos são os seus — as assimetrias de ombros, os drapeados, a predileção pelos jacquards e o peso dos estampados –, mas tudo isto fermentado num processo de introspeção e análise só possível com um confinamento forçado. Nuno assegura que nunca deixou de trabalhar. Com a loja fechada e sem clientes, a rotina manteve-se dentro do possível e desembocou aqui, num desfile com a identidade do seu criador bem vincada, segundo assinala o próprio.
Do arquivo emocional, como refere, trouxe velhas caras conhecidas — Telma Santos, Susana Traça, Isabel Sousa, Vera Moreira Rato e Ana Isabel, musas de sempre do criador. “Nos últimos anos, uma das coisas que me deixava menos feliz era olhar para um desfile e não conhecer as modelos. Ter estas cinco foi a melhor coisas que fiz e não foi uma opção pontual, é algo que quero continua a fazer”, comenta.
No final, todas as manequins terminaram dentro do lago, no culminar de uma coreografia arrebatadora e cinematográfica, que refrescou a memória lisboeta sobre o que é um desfile para Nuno Baltazar. “Ensaio” marcou o regresso do designer à ModaLisboa, mais de seis anos depois da última apresentação na capital e após um ano sem mostrar coleções. Sobre a continuidade nesta plataforma, remete apenas para a incerteza com que o mundo passou a projetar o futuro. “Não sei o que vai acontecer daqui a seis meses. Se for estar na ModaLisboa é porque ela está feliz e eu também”.
Olhos postos na moda. O resto é paisagem
Foram cinco os desfiles que preencheram o primeiro dia da ModaLisboa no terreno, também conhecido como Parque Eduardo VII. É uma edição história, disso não restam dúvidas. Tudo acontecem a céu aberto, entre a Linha d’Água e o Jardim Amália Rodrigues. No passado, o evento já havia explorado a moda e o parque enquanto elementos de um mesmo postal. Desta vez o novo coronavírus não deixou alternativa senão tirar o máximo partido da paisagem lisboeta.
Valentim Quaresma conseguiu fazê-lo com um cortejo negro sobre o verde intenso da relva, quase como se uma comitiva extraterrestre estivesse a aterrar num planeta virgem. “Dark Spring”, a coleção que apresentou nesta quinta-feira, viveu da amálgama de texturas através da utilização de desperdício têxtil com acabamentos múltiplos, vidro, cola quente e plumas. No novo atelier, o designer e artista explorou o upcycling dos vários materiais (território onde é reincidente) e fez das técnicas de costura convencionais práticas interditas.
O dia terminou com as silhuetas leves e fluidas de Ricardo Preto, numa perfeita harmonização com o jardim circundante. De um lado o conforto que, entretanto, se tornou imperativo, mesmo tratando-se de uma estação vindoura, com malhas, conjuntos ao estilo pijama e kaftans, do outro a desconstrução de peças de alfaiataria e camisaria clássicas.
João Magalhães foi outro dos nomes a figurar no calendário, bem como Buzina, a marca de Vera Fernandes, também ela uma criativa sensível à face mais providencial da pandemia. “Pela primeira vez, senti necessidade de fazer coisas leves”, explica ao Observador. Volumes e estruturas surgiram atenuados pela fluidez e transparência de novos materiais. Reforçada foi a cobertura do desfile, o primeiro do dia, nas redes sociais, bastidores incluídos. Escancarar a janela digital teve o seu retorno, garante.
Mesmo em contexto adverso e numa ModaLisboa pautada pelas restrições, Vera não poupa nas conclusões felizes. “Quem passou por aqui fê-lo para ver o desfile, mais do que para vir ao evento. Atrevo-me a dizer que esta edição pode ser a melhor — há menos socialização, mas mais foco na moda e isso para um designer é ouro sobre azul”.
A moda regressa ao Parque Eduardo VII na sexta-feira, com as apresentações de Awaytomars, Béhen, Duarte, Constança Entrudo e Luís Carvalho. Todos eles vão ter lugar na Estufa Fria. Até lá, na fotogaleria, veja as imagens que marcaram este primeiro dia de desfiles.