A juíza Amy Coney Barrett apresentou-se esta segunda-feira para o início do processo de confirmação da sua nomeação para juíza do Supremo Tribunal, naquilo que é um dos acontecimentos políticos mais importantes ao mesmo tempo que a data das eleições se aproxima. Durante quase cinco horas, os senadores de cada lado voltaram a trocar argumentos num debate surdo que transcende a nomeação em si e assenta no espírito de antecipação das eleições de 3 de novembro.
Do lado republicano, que está em maioria no Senado, a intenção é a de confirmar aquela juíza conservadora ainda antes das eleições mas, entre democratas, o desejo é o de conseguir empurrar a votação para depois das eleições.Se Amy Coney Barrett for confirmada, passará a haver 6 juízes conservadores e 3 liberais num tribunal onde os cargos são vitalícios.
Na sua apresentação, que aconteceu depois de os juízes da Comissão de Assuntos Jurídicos terem falado um a um, Amy Coney Barrett fez uma defesa convicta da escola de pensamento originalista, defendida pela ala conservadora, de que a Constituição deve ser interpretada com o espírito dos tempos em que foi escrita e não com os princípios do tempo em que ela é lida.
“Os tribunais têm a responsabilidade de garantir a aplicação da lei, o que é importante para uma sociedade livre. Mas os tribunais não foram criados para resolver todos os problemas e corrigir todos os males da nossa vida pública”, disse a juíza. “As decisões políticas e os juízos de valor do governo têm de ser feitos pelos decisores políticos, que são eleitos e responsabilizados pelo povo. O público não pode esperar que os tribunais façam isso e os tribunais não devem tentá-lo.”
Amy Coney Barrett prometeu ainda que como juíza prezará a própria independência e neutralidade, mesmo que isso vá contra as suas próprias opiniões ou interesses.
“Quando escrevo uma opinião que solve um caso, leio cada uma das palavras a partir da perspetiva do lado derrotado. Pergunto-me como é que olharia para aquela decisão se um dos meus filhos fosse a parte contra a qual estou a decidir. Mesmo que não goste do resultado, será que vou entender que a decisão é arrazoada e fundamentada pela lei?”, disse. “Este é o padrão que coloco para mim mesma em qualquer caso e é o padrão que vou seguir enquanto for juíza em qualquer que seja o tribunal.”
No seu testemunho, Amy Coney Barrett falou também do facto de estar habituada a “ser parte de um grupo de nove pessoas”, para depois explicar que se trata da sua família — uma coincidência com o número de juízes do Supremo Tribunal. “Como o Presidente disse quando anunciou a minha nomeação, [se for confirmada] seria a primeira mulher com crianças em idade escolar a servir no Supremo Tribunal”, assinalou.
Republicanos querem acelerar nomeação (ao contrário do que fizeram em 2016, quando Obama era Presidente)
A sessão foi inaugurada pelo presidente da comissão, o republicano Lindsey Graham, que começou por notar que a juíza liberal Ruth Bader Ginsburg foi confirmada (em 1993) com 96 votos a favor e 3 contra e que o juiz conservador Antonin Scalia foi admitido com 98 votos e nenhum contra (por erro, Lindsey Graham disse que tinham sido 97).
“Esses dias já passaram, com pena minha”, disse. “Não sei o que se passou desde então, e talvez tenhamos todos de assumir alguma culpa, mas houve uma altura em que Ruth Bader Ginsburg foi vista por quase toda a gente como sendo qualificadas para estar no Supremo Tribunal, [mesmo] sabendo que ela teria uma filosofia diferente de muitos dos republicanos que votaram nela.”
Recorde-se que, em 2016, a um mês das eleições desse ano e depois de os republicanos terem barrado o caminho ao juiz Merrick Garland, proposto por Barack Obama para substituir Antonin Scalia após a sua morte, Lindsey Graham disse à altura: “Quero que usem as minhas palavras contra mim. Se houver um Presidente republicano e uma vaga surgir no último ano do primeiro mandato, podem dizer que o Lindsey Graham disse ‘vamos deixar o próximo Presidente, seja ele qual for, fazer essa nomeação’”.
Uma vez que estas palavras lhe têm sido cobradas recentemente, Lindsey Graham disse agora: “Nunca houve, nos últimos 140 anos, uma posição em que houve um Presidente de um partido e o Senado de outro em que o nomeado foi feito pelo Presidente a substituir”.
“Sinto-me que estamos a fazer isto constitucionalmente, há amigos democratas que se opõem ao processo, eu respeito-os e eles vão ter oportunidade de falar, mas o mais importante é aprendermos mais sobre como funciona a lei, sobre os pesos e contrapesos, e do que se trata quando falamos do Supremo Tribunal quando estas audições terminarem”, disseram.
Outro dos senadores que falou do lado dos republicanos foi Ted Cruz. Em videoconferência, o ex-candidato presidencial disse “ficam claras na discussão da manhã” as “visões fundamentalmente diferentes” que os republicanos e democratas têm quanto ao Supremo Tribunal.
“Os democratas olham para o tribunal como um super-legislador, como um órgão que produz política e que decreta ao povo americano o que deve acontecer. Bom, essa visão do tribunal não tem qualquer base na nossa Constituição e é uma maneira curiosa para se querer governar um país”, disse.
“Quem é que no, seu perfeito juízo, quereria que os EUA fossem governados por cinco advogados que vestem robes negros e que não foram eleitos? É difícil pensar numa noção menos democrática do que uma que conta com reis não eleitos com cargos vitalícios a decretarem regras para 330 milhões americanos”, acrescentou. “Não é essa função do tribunal, a função do tribunal é a de decidir casos de acordo com a lei e deixar a política para os legisladores eleitos.”
Democratas exigem a Coney Barrett que “clarifique” posição em relação ao Obamacare e dizem que saúde está em causa
Do lado dos democratas, a primeira declaração coube à senadora Dianne Feinstein, da Califórnia. Depois de elogiar o legado de Ruth Bader Ginsburg, Dianne Feinstein exigiu à juíza Amy Coney Barrett que clarificasse a sua posição em relação ao Affordable Care Act (ACA), a lei que instituiu o sistema de saúde criado durante a presidência de Barack Obama — daí que se conheça aquela lei também por Obamacare.
“O Presidente prometeu nomear juízes que vão votar para desmantelar essa lei. Enquanto candidato, criticou o Supremo Tribunal por defender a lei e disse: ‘Se eu ganhar a presidência os meus nomeados vão fazer a coisa certa quando ao Obama, ao contrário do nomeado de Bush, John Roberts'”, disse.
Depois, Dianne Feinstein dirigiu-se à juíza que agora está a ser alvo do processo de confirmação: “Juíza Barrett, você já foi crítica do juiz John Roberts pela opinião em que o voto dele serviu de desempate a favor da lei, dizendo que Robert ‘levou o ACA para lá do seu significado [jurídico] plausível para poder salvá-lo’. Isto pode muito bem significar que se a juíza Barrett for confirmada, os americanos estão em risco de perder os benefícios que o ACA lhes providencia. Espero que clarifique isto”.
Em 2017, Dianne Feinstein já tinha sido protagonista no processo de nomeação de Amy Coney Barrett para o Tribunal da Relação do Sétimo Circuito. Nessa altura, a senadora democrata foi crítica da juíza conservadora, dizendo-lhe: “Seja lá qual for a religião, tem o seu próprio dogma. A lei é totalmente diferente. E creio que, no seu caso, quando lê os seus discursos, a conclusão a retirar é que o dogma vive fortemente dentro de si”.
Nessa ocasião, o senador democrata Dick Durbin, de Illinois foi também uma das vozes mais críticas contra Amy Coney Barrett, sugerindo que esta era uma “católica ortodoxa”. Esta terça-feira, apontou antes a mira aos republicanos no Senado, apontando que, ao contrário daquilo que defenderam em 2016, agora não querem esperar pelas eleições para confirmarem um juiz para a vaga no Supremo Tribunal.
“Porque é que os republicanos no Senado têm tanto medo de dar aos povo uma voz para definir o futuro do Supremo Tribunal?”, perguntou Dick Durbin. “Primeiro, devem duvidar de que Donald Trump será reeleito. Segundo, querem um Supremo Tribunal de 6-3 que leve avante uma agenda que na verdade não é lá muito popular com o povo americano.”
Depois, disse que há duas datas importantes que explicam aquilo que diz ser a “calendarização” dos republicanos: 3 e 10 de novembro.
“Sabemos de 3 de novembro é o dia de eleições. O Presidente Trump já disse que quer outro dos seus nomeados para o Supremo Tribunal antes das eleições porque ele está a antecipar ações em tribunal depois das eleições, especialmente contra votos por correspondência sem qualquer tipo de substância”, disse.
Sobre 10 de novembro, voltou a falar sobre a questão do ACA. Nesse dia, o Supremo Tribunal terá em mãos um caso que opõe o estado da Califórnia ao estado do Texas e que pode levar à abolição do ACA. “Estes é o caso em que a administração de Trump urge o tribunal a abolir o ACA em toda a sua extensão, incluindo as proteções para doenças pré-existentes”, disse. “É inimaginável que a meio de uma pandemia os republicanos queiram derrubar uma lei da qual dependem 23 milhões americanos para terem cuidados de saúde.”
Quem também se destacou entre os democratas foi a senadora Kamala Harris, candidata a vice-Presidente ao lado de Joe Biden. Em videoconferência — o meio preferido pela maioria dos democratas, embora não todos —, a senadora da Califórnia fez menção ao facto, na sua ótica indesejado, de aquela sessão estar a decorrer. “Esta audição sentou mais de 50 pessoas numa sala à porta fechada enquanto a nossa nação enfrenta um vírus mortal que se espalha pelo ar”, sublinhou.
Depois, pegou também no tema do Obamacare, dizendo que os republicanos “estão a tentar contornar a vontade dos eleitores e garantir que o Supremo Tribunal faz o trabalho sujo por eles”. “Se eles conseguirem, o resultado será que milhões de pessoas vão perder o acesso a cuidados de saúde a meio de uma pandemia”, sublinhou a democrata.
Votação final não acontecerá antes de 23 de outubro e pode até ser depois das eleições
A sessão desta segunda-feira será com a Comissão de Assuntos Judiciários do Senado, que se ocupará desta fase inicial do processo até esta quarta-feira, dia 14. No dia 15, os senadores daquela comissão, que incluiu republicanos e democratas, vão ouvir pessoas externas ao Senado e que possam falar de Amy Coney Barrett. Aquela comissão acabará por votar se aprova ou não a juíza a 22 de outubro. Depois, o passo derradeiro será o da votação no plenário do Senado — que poderá ser a 23 de outubro mas cuja data ainda não está definida.