Três acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, a que o Observador teve acesso, confirmam que a decisão do juiz Ivo Rosa de retirar o estatuto de assistente a três jornalistas não tem fundamento e revogam o despacho do juiz responsável pela instrução do processo Operação Marquês — que entre os arguidos tem o antigo primeiro-ministro José Sócrates.

Ivo Rosa considerou que os três assistentes mostraram “falta de interesse em agir e verdadeiro abuso de direito na posição processual e atribuições de assistente”, como se lê no despacho de 21 de novembro de 2019. O juiz tomou a decisão por despacho sem garantir aos visados o direito de defesa.

“O princípio do contraditório, com assento constitucional, impõe que seja dado a todo o participante processual oportunidade de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afete nos seus direitos, designadamente, que seja dada ao acusado a efetiva possibilidade de contrariar e contestar as posições que lhe são imputadas”, escreve Jorge Gonçalves no acórdão.

Já em março de 2019, Ivo Rosa tinha impedido que os três assistentes — Luís Rosa (Observador), Sérgio Azenha (Correio da Manhã) e Felícia Cabrita (Sol) — tivessem “acesso aos actos de instrução” e à “cópia de autos de inquirição ou de interrogatório de arguido”. Esta decisão foi revogada, pelo menos num dos recursos, pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

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Na argumentação do despacho de novembro, o juiz considera que a ideia de que qualquer pessoa possa intervir nos autos como assistente, quando se tratam de crimes de interesse público, tem como objetivo “conferir aos cidadãos a possibilidade de exercerem uma cidadania ativa, participativa e de colaborarem com o Ministério Público na realização da justiça”, mas que os jornalistas em causa estariam a tentar ter acesso privilegiado à informação que consta do processo.

O procurador do Ministério Público Rosário Teixeira, citado nos presentes acórdãos, não rejeita a “sanção” contra os “assistentes que têm a profissão de jornalistas” imposta por Ivo Rosa e descarta qualquer relação com a iniciativa de março de 2019 de impedir o acesso aos actos de instrução. Ao contrário de Ivo Rosa, no entanto, o procurador entende que um assistente pode decidir por uma “estratégia de inatividade processual”.

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Os juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa consideraram, no entanto, que Ivo Rosa não fundamentou como cada um dos assistentes terá mostrado falta de interesse e abuso de direito e se limitou a acusá-los a todos de forma genérica. Até porque, se estavam impedidos de aceder aos autos, não podiam ter cometido as práticas de abuso de direito de que estão acusados.

Para os juízes Ricardo Cardoso e Artur Conceição, Ivo Rosa deixa transparecer outra coisa, que não concorda que uma pessoa, por ser jornalista, se possa constituir como assistente num processo.

Ricardo Cardoso e Artur Conceição acrescentam, assim, que Ivo Rosa não deve temer o escrutínio que lhe seja feito pelos assistentes ou pela imprensa e citam William Blake: “Quando a imprensa não fala, o povo é que não fala. Não se cala a imprensa. Cala-se o povo”.

“A liberdade de imprensa constitui também uma garantia de escrutínio das instituições democráticas e dos seus servidores, que por seu lado estão sujeitos a tal escrutínio pela própria natureza das suas funções e quem a tal está sujeito não pode, nem deve, intervir para contribuir para a opacidade de tal exercício de poder, e muito menos deve contribuir para o que possa parecer o temor do seu próprio escrutínio”, lê-se no acórdão assinado por Ricardo Cardoso e Artur Conceição.

No recurso apresentado pelos assistentes, é referido que o despacho de Ivo Rosa “não cumpriu o princípio do contraditório, a que estava obrigado”. Ou seja, Ivo Rosa não permitiu que os assistentes visados se pudessem defender antes de ser proferida a decisão que os afetava diretamente. O procurador Rosário Teixeira considera que não seria necessário contraditório uma vez que os assistentes foram avisados e não mudaram os comportamentos.

Diferente entendimento têm, no entanto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa. A “sanção” aplicada por Ivo Rosa “não podia ser decidida sem que o seu destinatário [cada um dos assistentes] tivesse a possibilidade de ser ouvido quanto à mesma”, escreve o relator de um dos acórdãos Jorge Gonçalves. Ou seja, os assistentes tinham direito a defender-se das acusações de que eram alvo pelo princípio do contraditório.