Morreu este sábado nas Baamas, aos 90 anos, o ator escocês Sean Connery — o primeiro a fazer de James Bond nos filmes da saga 007. A notícia foi avançada pela estação britânica BBC. Teve uma carreira de quase 50 anos no cinema, iniciada na primeira metade da década de 1950 e concluída nos primeiros anos desta década, quando decidiu retirar-se.

Miúdo pobre, estrela de primeira grandeza em Hollywood e muitas vezes descrito como o “homem mais sensual do mundo”, Sean Connery foi artista de referência para gerações em todo o mundo. A partir do início dos anos 1960 tornou-se um dos atores mais reconhecidos e populares de sempre, ao interpretar o papel de James Bond nos primeiros filmes da saga de espionagem.

Em apenas seis anos, entre 1962 e 1967, Sean Connery vestiu a pele de James Bond, galã e espião ao serviço de sua majestade, nos filmes “Agente Secreto 007” (1962), “007 – Ordem para Matar” (1963), “007 – Contra Goldfinger” (1964), “007 – Operação Relâmpago” (1965) e “007 – Só Se Vive Duas Vezes” (1967). Mais tarde regressou ao papel com “007 – Os Diamantes São Eternos” (1971) e “Nunca Mais Digas Nunca” (1983). Sete vezes James Bond, tantas quantas Roger Moore, que lhe sucederia no papel.

On the set of From Russia with Love

Sean Connery na rodagem de “007 – Ordem Para Matar”, filme de 1963 (@ Sunset Boulevard/Corbis via Getty Images)

Entre os prémios que conquistou pelos desempenhos no cinema, contam-se um Óscar de Melhor Ator Secundário pela interpretação da personagem Jim Malone, um polícia irlandês, em “Os Intocáveis”, filme de 1987 realizado por Brian de Palma e com Kevin Costner e Robert De Niro também no elenco. Venceu ainda três Globos de Ouro e dois prémios Bafta.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Dono de uma estatura imponente — 1m88 — e de uma presença sóbria e imperiosa no ecrã, apareceu descrito em 1971 numa entrevista ao Guardian como tendo “um lado muito humano”. Com este pormenor: “Tem uma voz rosnada que ocasionalmente, quando se descontrai, deriva para as vogais rígidas que herdou do meio social desfavorecido em que cresceu, nas zonas mais difíceis de Edimburgo.”

Sean Connery tinha completado 90 anos de idade há dois meses, a 25 de agosto. Deixa a mulher, Micheline Roquebrune, com quem se casou em 1975. E ainda um filho — Jason Connery, de 57 anos, também ele ator —, a enteada que perfilhou, Stephane, e o neto Dashiell Connery, de 23 anos, que segue as pisadas da família e está a tentar começar uma carreira de ator.

Os motivos da morte não foram divulgados no sábado, apesar de o filho ter dito à BBC que o pai estava doente há já algum tempo. “Morreu rodeado pela família”, divulgou uma porta-voz, citada pela CNN, adiantando que uma cerimónia de tributo poderá acontecer “depois de o vírus passar”.

[A carreira de Sean Connery, o “eterno James Bond”, em síntese para ouvir aqui:]

A carreira de Sean Connery, o “eterno James Bond”

O primeiro emprego? Leiteiro

Nascido há nove décadas em Edimburgo, com o nome de batismo Thomas Sean Connery (e nomeado Thomas por o avô ter o mesmo nome), era filho de Euphemia “Effie” McBain McLean, empregada de limpeza e protestante; e de Joseph Connery, que trabalhava numa fábrica, era camionista e católico. O irmão, Neil, nasceu em 1938. A infância de dificuldades e pobreza, em que até tomar banho com frequência era uma raridade, marcou-o para sempre e foi por ele referida em muitas entrevistas. “Penso que a minha força como ator vem de nunca me ter afastado daquilo que sou”, afirmou em 1987.

Segundo o New York Times, o lado negro de Sean Connery, sempre receoso de ser enganado pela indústria do cinema e por isso mesmo um litigante de primeira linha, que ao longo das décadas processou judicialmente produtores e colaboradores próximos, devia-se ao ressentimento que lhe vinha da infância, por ter crescido quase sem nada.

“Tenho um temperamento agressivo que uso como ator”, explicou numa entrevista há mais de três décadas. “Se se deve à infância ou a outros fatores, não estou certo. Sei que a morte do meu pai teve em mim um efeito totalmente devastador.”

Goldfinger

Sean Connery e um Aston Martin, nas gravações de “007 – Contra Goldfinger”. O filme chegou às salas de cinema em 1964 (@ Michael Ochs Archives/Getty Images)

Apesar do primeiro nome ser Thomas, desde pequeno que entre amigos o filho de “Effie” e Joseph era tratado pelo nome do meio, Sean, e pelo apelido Connery. O primeiro trabalho que teve, após abandonar os estudos, com 13 anos, foi como leiteiro, transportando leite pelas ruas da cudade natal. Aos 16, entrou na Marinha Real britânica, da qual veio a ser dispensado três anos mais tarde, devido a uma úlcera no duodeno. Dali regressou com duas lembranças gravadas na pele: um par de tatuagens com declarações de amor à família (“Mum & Dad”) e ao seu país (“Scotland forever”).

Seguiram-se, antes da incursão no cinema, muitos outros trabalhos: foi camionista como o pai; nadador salvador nas piscinas de um subúrbio costeiro de Edimburgo, Portobello; operário; modelo de pintores e artistas na Universidade de Belas Artes de Edimburgo. Chegou até a polir caixões.

No início dos vintes, com a década de 1950 a chegar, chegou a pensar enveredar pelo futebol — passara antes pelo clube escocês Bonnyrigg Rose e diz quem o viu  que o talento era notório, tendo tido até uma proposta do Manchester United —, mas acabou por optar pelo cinema, até pela maior longevidade da carreira que poderia ter na sétima arte, face à que o futebol lhe oferecia.

On the set of Goldfinger

@ Corbis via Getty Images

Anos 50: do teatro no Reino Unido à sétima arte

Primeiro, o teatro em Edimburgo, depois em Londres. O facto de se ter tornado culturista, dono de um físico bem desenvolvido, terá sido o que o aproximou da representação e o levou a ser escolhido para um primeiro papel como membro do coro do musical “South Pacific”, em 1953. Pela mesma época conheceu o ator americano Robert Henderson (1904-1985), que lhe deu noções básicas de representação e o familiarizou com peças de Oscar Wilde e Henrik Ibsen e romances de Thomas Wolfe e Marcel Proust, escreveu o New York Times.

Até a carreira arrancar chegou a ter um part-time como babysitter e um papel como pugilista numa peça televisiva (“The Square Ring”). Fez na televisão “The Condemned”, programa do cineasta e realizador de televisão canadiano Alvin Rakoff.

Foi porém como ator de cinema que Sean Connery se notabilizou. Pimeiro papel no grande ecrã, ainda assim discreto: Spike, um gangster no filme “No Road Back”, de 1957. Somou uma peça de teatro televisiva para a BBC (“Requiem For a Heavyweight”) e, ainda em 1957, os filmes “Hell Drivers”, “Action of the Tiger” e, neste último com um papel bem mais discreto, “Time Lock”.

Sean Connery

Sean Connery na produção televisiva da BBC “Requiem For a Heavyweight” (@ WATFORD/Mirrorpix/Mirrorpix via Getty Images)

Ainda nos anos 1950, Sean Connery participou em filmes como “Another Time, Another Place” — melodrama mais popular do que a maioria dos filmes em que aparecera previamente, mas que lhe trouxe dores de cabeça por culpa de uma altercação física com o ciumento namorado da protagonista, Lana Turner, um gangster chamado Johnny Stompanato — e “Darby O’Gill and the Little People”, uma produção da Walt Disney. Paralelamente aos filmes, na ponta final da década em que começou a emergir como ator, juntou-se ao elenco de peças televisivas da BBC, nomeadamente “Adventura Story” e “Anna Karenina”.

Anos 60: o momento em que se torna estrela como Bond, James Bond

Já os anos 60 ficaram marcados, inevitavelmente, pela saga James Bond (e foi também nesta fase que descobriu a paixão pelo golfe). No papel másculo de espião duro e impenetrável, que tinha como calcanhar de Aquiles um coração fraco por mulheres, Connery assentou como uma luva, com uma presença física imponente, trejeitos viris, postura de galã.

Houve quem duvidasse inicialmente da sua capacidade de dar corpo e voz, no grande ecrã, à personagem que Ian Fleming criara nos livros: achavam-no pouco refinado, rígido, uma espécie de canastrão sem currículo para a idade que já levava. Terá sido o caso não só de Fleming como também de Albert “Cubby” Broccoli, produtor de cinema decisivo para a transposição da saga 007 para o grande ecrã. Chegaram a ser pensados para o papel outros atores, como escreveu a BBC: Richard Burton, Cary Grant e Rex Harrison, sobretudo, mas até mesmo Lord Lucan e Peter Snow.

No papel de Bond, não convenceu logo todos (nomeadamente a crítica) mas convenceu logo a maioria (nomeadamente o público). O primeiro filme da saga, “Agente Secreto 007”, exibido nas salas de cinema britânicas em 1962, foi um êxito retumbante. Até o presidente norte-americano de então, John F. Kennedy, ficou curioso e exigiu uma transmissão do filme em privado, na Casa Branca, contou a BBC.

On the set of From Russia with Love

@ Corbis via Getty Images

O desgaste, alguns problemas de produção — de financeiros a de segurança — e a vontade de fazer outras coisas fizeram-no largar o papel e ir à procura de outros trabalhos. Recusou ser novamente Bond em “007 – Ao Serviço de Sua Majestade” (1969), foi substituído por George Lazenby, mas voltou ao papel pouco depois em “007 – Os Diamantes São Eternos” (1971).

Diz-se, de resto, que o cachet de um milhão de dólares que recebeu por “007 – Os Diamantes São Eternos” foi doado à Scottish International Education Trust, associação de apoio a crianças e jovens escoceses das classes baixas. A sua intervenção cívica passou também pelo apoio declarado à independência da Escócia e chegou a financiar o Partido Nacional Escocês (partido nacionalista de centro-esquerda, que hoje governa o país).

Voltaria à eterna personagem uma última e única vez, nos anos 1980, em “Nunca Mais Digas Nunca” (1983), numa altura em que o público já estava habituado a ver no papel do espião britânico o ator Roger Moore. O próprio título aludia à relação finita do ator com a saga e ao que uma vez dissera: que nunca mais faria de James Bond. O plano era esse, mas uns negócios que correram mal com umas propriedades em Espanha e uma oferta demasiado tentadora tornaram aquele regresso possível. Daí em diante, o papel passaria a ser assegurado no cinema por Timothy Dalton (1986-1994), Pierce Brosnan (1994-2004) e Daniel Craig (de 2005 até hoje).

[Neste mês em que se assinalou o “Global James Bond Day”, o programa “Isto Não Passa Na Rádio” dedicou um episódio às melhores canções dos filmes “James Bond” — e ainda se discutiu qual o melhor Bond. Oiça aqui:]

As melhores canções dos filmes James Bond

Nem só de James Bond se fez Connery

Nos anos 1960 em que se tornou uma estrela como James Bond, Sean Connery não se limitou à saga: fez também “The Hill” (1965) e um filme de culto, menos popular do que os blockbusters da saga 007, mas que fica para a história do cinema: “Marnie” (1964), no qual foi dirigido pelo grande realizador de cinema Alfred Hitchcock.

Marnie

Sean Connery e Tippi Hedren, no filme “Marnie”, de Hitchcock (@ FilmPublicityArchive/United Arch)

A partir do sucesso, sucederam-se as propostas de grandes papéis. Nos anos 70 fez por exemplo “Um Crime no Expresso do Oriente” de Sidney Lumet (1974), “O Leão e o Vento” de John Milius e “O Homem Que Queria Ser Rei” de John Huston (ambos de 1975), “A Flecha e a Rosa” (fez de Robin Hood neste filme de 1976, em que contracenou com Audrey Hepburn) e “Uma Ponte Longe Demais” de Richard Attenborough (1977), entre outros.

Nos anos 80 fez filmes como “Os Ladrões do Tempo” de Terry Gilliam (1981), “O Nome da Rosa” (1986, pelo qual recebeu o prémio de Melhor Ator da British Academy of Film and Television Arts) e “Os Intocáveis” (1987, em que teve a sua interpretação mais premiada). Entrou ainda em “Indiana Jones e a Última Cruzada” (1989) e foi o narrador de “G’olé!”, filme oficial do Mundial de Futebol de 1982.

A revista americana People indicou-o em 1989 como “o homem mais sensual do mundo”. “Mais velho, com menos cabelo, cada vez melhor”, escreveu a revista na capa. No ano seguinte, o ator esteve em Lisboa para filmagens de “A Casa da Rússia”, filme de Fred Schepisi baseado num romance de John le Carré, com Michelle Pfeiffer em contracena. O romance era, aliás, inspirado na figura do filósofo português Agostinho da Silva, “um velho místico com rosto de santo”, como escreveu Le Carré, e os cenários lisboetas da película incluíram o bairro de Alfama; o miradouro do Largo das Portas do Sol; e o Largo das Belas-Artes, no Chiado.

Indiana Jones

Ao lado de Harrison Ford no filme “Indiana Jones e a Última Cruzada”, de 1989 (@ Murray Close/Getty Images)

Nos anos 90, década em que começou também a trabalhar como produtor de cinema, Sean Connery fez “Caça ao Outubro Vermelho” de John McTiernan (1990), “Sol Nascente” de Philip Kaufman (1993), “O Rochedo” de Michael Bay (1996) e “Entre Estranhos e Amantes” (de 1998).

Já neste século, com uma atividade bastante mais reduzida, foi ainda assim ator e produtor em “Descobrir Forrester” (2000) e “Liga de Cavalheiros Extraordinários” (2003), tendo dado voz ao filme de animação “Sir Billi” (2012), que também produziu. O seu último filme foi um documentário: “Ever to Excel”, de 2012, sobre a Universidade de St Andrews, na Escócia.

Nomeado sir em 2000 pela rainha Isabel II, publicou oito anos mais tarde a autobiografia “Being a Scot”, escrita em coautoria com Murray Grigor (sem tradução em Portugal). O livro era escasso em pormenores da sua vida íntima e em boa medida detinha-se na história da Escócia e em aspetos culturais. Vivia em Nassau, nas Baamas, e dizia que um regresso à Escócia só aconteceria depois de o país se tornar independente.