Título: Contra Mim
Autor: Valter Hugo Mãe
Editora: Porto Editora
Ano da Edição: outubro de 2020
Páginas: 284
Preço: 16,60€

“Contra Mim” foi publicado no mês de outubro

Valter Hugo Mãe sempre teve a certeza de que a sua vida não daria um livro, mas acabou por descobrir que escrever sobre si próprio “era afinal tão irresistível quanto necessário para cumprir a tarefa” de se “rever e ajustar”. “Não para garantir que melhoraria, (…) mas para chegar mais próximo de me suportar e, essencialmente, suportar a contingente distância a que estão os outros e a incapacidade de nos comunicarmos e de nos entendermos”, explicou. Dificilmente haveria uma altura em que fizesse mais sentido fazê-lo. Num ano necessariamente introspetivo, “acabou sendo perfeito” regressar e recuperar textos dispersos e apontamentos diversos sobre as memórias da infância, escritos ao longo de 15 anos, e moldá-los à imagem de um livro, Contra Mim, publicado no passado mês de outubro.

O livro está dividido em duas partes, cada uma composta por pequenos capítulos que relatam episódios curiosos da infância do autor. A primeira parte, “As palavras pariam os seus significados”, é dedicada à infância em Paços de Ferreira, junto da família, sobretudo maternal, dos amigos e brincadeiras e dos bichos, como os pirilampos e os louva-a-deus, que encantam e intrigam a criança que foi o autor. É um tempo de todas as descobertas e da reconstrução de memórias muitas vezes anteriores ao próprio narrador, como o tempo do namoro dos pais; de Angola, onde nasceu mas da qual não se lembra; ou de Casimiro, o irmão mais velho que morreu antes de Valter Hugo Mãe nascer.

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A segunda parte, “Caxinas hardcore”, passa-se nas Caxinas, em Vila do Conde, onde não há bichos e tudo é mar. A mudança de casa, de localidade, e inevitavelmente de vida, marca o fim de uma certa inocência (embora o autor garanta que, por mais asneiras que tentasse fazer, tinha “uma alma de passarinho”) e a transição da infância para a primeira adolescência. As raparigas passam a fazer parte das conversas (há até idas aos cinema com o amigo Chiquinho para ver filmes pornográficos), mas também os livros.

Foi nas Caxinas que Hugo Mãe acordou para o mundo dos livros, ao reparar numa edição de O Segredo do Castelo do Terror, um texto de Alfred Hitchcock para adolescentes, nas estantes de uma papelaria. Antes desse episódio, nunca lhe tinha ocorrido que haveria uma relação entre aquilo que escrevia nos seus caderninhos, e que por aquela altura já tinha ganho contornos de poesia, e os livros: “Meus poemas e minhas histórias não tinham vocação para edição. Eram conversas com minha própria personalidade e não se motivavam senão pelas emoções inexploradas. Estavam como acontecimentos da solidão e do bulício pessoal”.

Contra Mim é essencialmente a história da infância de Valter Hugo Mãe, contada com uma linguagem que se aproxima do infantil, mas sem ser infantilizada. Há inocência no texto, como numa criança, mas também deliberação poética. Essa viagem no tempo é, para Hugo Mãe, sobretudo “emotiva”. “Lembro confusamente as datas e os nomes, mas muito claramente as situações e as palavras. Aquilo que sei de mim é feito do que serve ao poema e da impressão rotunda do fascínio e do susto”, admite. A verdade dos factos é suplantada pela verdade das palavras, veículo de recordação num exercício que é eminentemente literário. A importância da palavra escrita é evidente na história, que atravessa toda a obra, de como, durante a infância, Hugo Mãe descobriu o poder das palavras.

Antes de saber o que era literatura ou mesmo os livros, Valter Hugo Mãe deixou-se enfeitiçar pelas palavras. Pelas palavras enquanto unidades individuais, com poder próprio, mágico, sagrado. Para que nunca as perdesse, começou a colecioná-las em caderninhos. Fazia listas das que mais gostava e essas listas um dia viraram poemas. As poucas pessoas que notaram esses versos, diziam que, quando crescesse, ia ser escritor. Mas Hugo Mãe nunca sonhou em ser escritor: “Eu escrevia e maravilhava-me com a simples efabulação dos sonhos dos outros, escritores incluídos”.

O importante para si “era a expectativa de as palavras fazerem um milagre. Para mim, as palavras  prometiam milagres, nunca pertenciam ao normal. Eram instrumentos de partida. Iniciavam deslocações e mudanças profundas. Talvez até nos impedissem o regresso, por maior esforço ou inteligência”. Também serviam para comunicar com os mortos, sobretudo com o irmão Casimiro, morto muito antes do escritor nascer, mas uma presença constante de proteção e amparo ao longo da sua infância.

Tudo isto se passou no passado, mas é tão fácil de transpor para o presente. Não há duvida de que, para Hugo Mãe, as palavras permanecem mágicas, com capacidades especiais. São capazes de transpor de forma lógica aquilo que observa: “Hoje, convoco muito o verso de meu amigo Artur do Cruzeiro Seixas que fala na boca que olha. Identifico-me profundamente com a avidez de olhar assim. Foi por onde comecei, já não tenho como terminar sem usar as palavras para meu aflito talento de observar”.

Apresentado como o mais pessoal dos livros de Valter Hugo Mãe, Contra Mim é uma conversa do autor de si para si, onde o leitor tem permissão para entrar. E é precisamente aí que reside a sua fraqueza: por vezes, é inevitável não sentir o desconforto de quem está a mais. Mas na verdade dos outros é sempre possível encontrar a nossa, e o desejo de Hugo Mãe, o “de encontrar a motivação mais antiga: a de que ainda haverá beleza”, poderá servir de consolação a qualquer um. Porque “nem que cresçamos sem casar. Ainda haverá poemas. Em todas as clausuras e adiamentos se colhem poemas”.