— O de Lá de cima está borradinho de medo
O ex-porta-voz da Polícia Judiciária, major Brazão, já andava a ser escutado pela Policia Judiciária civil quando, a 14 de dezembro de 2017, falou ao telefone com o amigo e colega major Pinto da Costa, ao serviço da PJM do Porto. Tinham passado dois meses do achamento das armas furtadas em Tancos num descampado na Chamusca, numa operação que envolveu militares da PJM e da GNR de Loulé e cujos contornos foram imediatamente questionados pelo Ministério Público e pela PJ civil — a quem tinha sido atribuída a coordenação da investigação. E, nessa chamada, Brazão acabava por dizer a Pinto da Costa: “o Lá de cima está borradinho de medo”, lê-se na acusação.
Na interpretação do Ministério Público, o “de lá de cima” seria Luís Vieira, o então diretor da Polícia Judiciária Militar que está entre os 23 arguidos do caso Tancos, e que entendeu sempre que a investigação a um crime ocorrido numa estrutura militar não devia sair da sua alçada. Mas, para o major Pinto da Costa, também arguido e que está esta segunda-feira a ser ouvido no Tribunal de Santarém, o “de lá de cima” era, afinal, o seu colega da PJM do Porto, o sargento Mário Lage de Carvalho, com quem fez milhares de quilómetros entre o Porto, o Algarve e a zona de Tomar a investigar o furto em Tancos, mas sempre com guias de marcha com o número de um outro processo. “Aproveitava para fazer outras diligencias nesses deslocamentos”, justificou.
Segundo o major Pinto da Costa, nessa altura já os militares que tinham recuperado as armas sabiam que tinham causado mau estar no seio da PJ civil e estavam “a ser seguidos” por isso. Aliás, contou o militar, houve mesmo uma cerimónia em que Luís Vieira se encontrou com o à data diretor da Polícia Judiciária civil, Almeida Rodrigues, de quem era amigo, e que este lhe terá dito: “Tem cuidado com o Luís Neves que ele é muito perigoso, tu não imaginas o que ele pode fazer”, disse em tribunal. Luís Neves é o atual diretor da Polícia Judiciária civil e será ouvido em Santarém como testemunha.
Já antes, justificou em tribunal, tinham saído notícias de que Luís Neves não iria perdoar o que fizeram e com alegadas promessas de vingança, como à data noticiou o Observador. Por outro lado, o próprio sargento Lage de Carvalho — “mais atento” do que ele “nestas coisas — tinha mesmo apanhado uma equipa da PJ civil a colocar-lhe um aparelho na viatura dele de serviço, numa noite em pernoitou em Lisboa em “casa de um amigo”, para no dia seguinte seguirem para o Algarve para falar com os militares da GNR envolvidos na investigação.
“O Mário estava aterrorizado”, disse. “Não houve mortes nessa noite porque ele não tinha arma”, lembrou o investigador da PJM, que assumiu muitas vezes andar desarmado e até se esquecer da arma, por não ser confortável andar com ela.
O procurador do Ministério Público perguntou-lhe, depois, porque estavam aterrorizados se, de acordo com as suas declarações, não tinham feito nada errado e tinham agido seguindo ordens superiores. E o militar voltou a falar nas notícias que foram saindo e na mensagem de Almeida Rodrigues.
Logo no dia da recuperação de armas em Tancos, o major Pinto da Costa e o seu superior coronel Estalagem — que não é arguido no processo, mas que está a ser um dos alvos do arguido — foram chamados a uma reunião no Departamento Central de Investigação e Ação Penal para darem conta dos moldes da operação de recuperação de armas e as razões de não terem informado imediatamente o MP e a PJM. À saída do tribunal, o advogado do major Pinto da Costa, Ricardo Serrano Vieira, afirmou mesmo “houve pessoas tiradas deste processo”.
Tancos. Major Pinto da Costa admite que mentiu no DCIAP, mas que só cumpriu ordens. “Obedeci sempre”
“Pacto dos cinco” não incluía amigo Major Brazão
O Ministério Público diz que em dezembro, Pinto da Costa tentou fazer o “pacto dos cinco” com os militares envolvidos na recuperação das armas — ele, Mário Carvalho e os três militares de Loulé — para acertarem versões quando fossem chamados pela PJ civil para falar sobre isso. Pinto da Costa diz que essas versões só serviram para perceberem quem ia dizer o quê aos superiores hierárquicos, não da operação, mas por estarem a sentir-se perseguidos pela PJ civil. “Cheguei a fotografá-los e a filmá-los atrás de nós até ao Algarve. Entreguei tudo ao diretor geral”, disse. “Como podia fazer um pacto de cinco e deixar o meu amigo Major Brazão de fora?”, interrogou olhando para trás e apontado para o ex-porta-voz da PJM.
Na última sessão Pinto da Costa assumiu que na reunião que participou no DCIAP, no dia do achamento das armas, que ocultou do Ministério Público que a operação tinha partido de uma negociação com um informador, em vez de uma chamada anónima como referia o comunicado feito nesse dia. O juiz perguntou-lhe se tinha consciência que tinha mentido a magistrados. Nesta sessão o militar voltou a tocar no assunto. “Eu não menti, eu não desautorizei o senhor coronel Estalagem, porque isso podia ter implicações para mim. A tropa funciona assim”, afirmou.
“Em frente a uma plateia daquelas estar a desautorizar um superior hierárquico… eu nunca na vida iria fazê-lo. Não acredito que nenhum militar das Forças Armadas fizesse isso”, disse.
Garantiu, porém, que depois confrontou os seus superiores com isso e que lhe deram a indicação para manter esta versão, de forma a preservar a identidade do informador.
Jà à tarde o advogado Germano Marques da Silva, que representa o ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes, perguntou-lhe se alguma vez presenciou algum contacto dos seus superiores com o este governante. “Nunca presenciei nenhum telefonema do diretor geral ou de quem quer que seja para o ministro”, afirmou Pinto da Costa.
“É falso, é falso”
Durante a tarde, e depois de terminar o depoimento do major Pinto da Costa, foi a vez do sargento Lage de Carvalho, que acompanhava o major Pinto da Costa, ao serviço da PJM do Porto, falar. O militar, que veio da GNR e que já conhecia o sargento Lima Santos, responsável pelo Núcleo de Investigação Criminal da GNR de Loulé, explicou como o apresentou aos majores Pinto da Costa e Brazão num encontro no Algarve Shopping.
Quando o juiz lhe perguntou pelo teor da acusação, o militar — que deverá continuar a ser ouvido terça-feira — respondeu sem rodeios: “é falso, é falso”. “E sobre o pacto de silêncio?”, que o Ministério Público acredita ter sido feito entre os militares da PJM, da GNR e o próprio ex-ministro. “É de uma extrema violência afirmar certas coisas que estão aí [no despacho de acusação]”, afirmou.
O militar admitiu ter acompanhado o “chefe” Pinto da Costa em várias diligências na zona de Castelo de Bode no âmbito do processo de Tancos. Confessa que nunca “explorou” muito a questão da competência porque reteve que a parte do furto seria da competência da Polícia Judiciária Militar, como já tinha acontecido noutros processos. Mais. Lembra-se de assistir a vários contactos entre Pinto da Costa e o coronel Estalagem, que era o oficial de ligação à PJ civil. “Nunca vi nada de anormal”, disse.
O major Pinto da Costa é acusado de sete crimes : associação criminosa, tráfico e mediação de armas, falsificação e ou contrafação de documento, denegação de justiça e prevaricação, favorecimento pessoal por funcionário, dois crimes de detenção de arma proibida. O Ministério Público acusa-o de de ter sido informado por um inspetor de Vila Real da queixa que Paulo Lemos (Fechaduras) tinha feito e de um possível ataque a umas instalações militares. Após o assalto recordou essa conversa a Lage de Carvalho, que lhe forneceu mais informações sobre Fechaduras. É ele que sugere mandar alguém ao Algarve e é ele que também participa na preparação do acordo para a recuperação das armas, usando como justificação para a sua investigação um processo que tinha em mãos no Porto e que nada tinha a ver com o caso.
Em tribunal os dois militares garantem que só o inspetor da PJ de Vila Real só telefonou a Pinto da Costa a dar conta dessa queixa após o furto a Tancos, estava ele num curso em Lisboa. Lage de Carvalho, que também estava com ela, corroborou.
Já o sargento Lage de Carvalho é acusado de cinco crimes: associação criminosa, tráfico e mediação de armas, falsificação e ou contrafação de documento, denegação de justiça e prevaricação, favorecimento pessoal por funcionário. O Ministério Público diz que ao saber da informação sobre Fechaduras, pediu informações sobre ele a Lima Santos. Ambos mantiveram 54 conversas telefónicas naquele período. O militar assumiu em tribunal que o fez, a pedido de Pinto da Costa.