Morreu Diego Armando Maradona. Morreu uma parte do futebol. Morreu talvez a parte mais divina que o jogo alguma vez teve desde que se fez jogo numa Inglaterra que ainda hoje não esquece a mão de um Deus que somava seguidores com aquilo que conseguia fazer com o seu pé esquerdo. “Se não fosse a cocaína, imaginem o jogador que eu tinha sido”, dizia. A genialidade era tanta que lhe permitia até gozar com os próprios excessos. Tinha 60 anos e, de acordo com a imprensa argentina, mais concretamente o Clarín, sofreu uma paragem cardiorrespiratória na cidade de Tigre, onde estava a recuperar após uma intervenção cirúrgica a um coágulo no cérebro.

Crónica. Maradona fintou-nos e a bola ficou menos redonda

“Hoje tivemos esse milagre de não descermos de divisão devido ao final antecipado do Torneio, muitos dizem que é uma nova mão de Deus. Mas só peço a essa mão de Deus que acabe com esta pandemia e que as pessoas possam voltar a viver as suas vidas novamente, com saúde e felicidade”, tinha dito o argentino, então técnico do Gimnasia, a meio de abril. Esse momento ainda não chegou mas quando chegar nunca será com a felicidade que poderia ou deveria ter. 2020 tem sido um ano fatídico e voltou a ceifar mais um ícone do imaginário do desporto mundial. E sim, Maradona era único. A discussão entre quem é o melhor de sempre no futebol vai continuar a atravessar gerações atrás de gerações mas só ele, ou Ele, mais ninguém, conseguia encher estádios na Argentina, na Europa ou no Mundo apenas para ver aquele pé esquerdo com chuteira desapertada a dar toques no aquecimento.

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A última morte de Diego Armando Maradona (1960-2020)

Maradona desafiou o impossível e ganhou. Ganhou quando se tornou campeão mundial em 1986 pela Argentina, a marcar golos com a mão e de seguida a fintar meia equipa (e mais houvesse) para voltar a fazer a festa em campo. Ganhou quando agarrou num modesto clube do sul de Itália e se sagrou campeão transalpino colocando no bolso o domínio das formações mais ricas do norte. Ganhou quando chegou a um nível de tal forma extraterrestre que se começou a perdoar os constantes tropeções nos vícios mais mundanos. Diego ganhou tudo sem ter pedido nada a não ser uma bola de futebol. Emil Kusturica antecipou-se mas a vida do 10 dava no mínimo outros tantos filmes sempre com aquele sorriso maroto de miúdo que nem o passar das décadas foi capaz de apagar. Numa hora de dor, até os rivais se juntaram. E o “1960-infinito” do River Plate conta muito sobre esta figura.

Diego Maradona - El Grafico Sports Archive

É impossível um jogador ganhar sozinho uma grande prova? Sim. Talvez. Mas depois houve o Mundial de 86 e Maradona…

Se o futebol é uma religião, Diego tem ele própria uma Igreja. A Igreja Maradoniana. Nasceu em 1998, em Rosário, quase por acaso. Hernán Amez, jornalista, começou nesse ano a festejar o Natal no dia 29 de outubro, exatamente a véspera do aniversário de El Pibe. Aquilo que não passava de uma homenagem em vida rapidamente se tornou num movimento eterno com centenas de milhares de fiéis que reúnem dois dias por ano num ato de fé: a 22 de junho, na Páscoa, e a 29 de outubro. “Voltaremos, voltaremos, voltaremos. Voltaremos outra vez. Voltaremos a ser campeões, como em 1986”, proclama-se, numa das frases que Maradona mais gostava de ouvir no seio do reino onde Ele é Deus. Também tem 10 mandamentos. Dez ideias que podem resumir uma vida que chegou ao fim no mesmo dia em que, há quatro anos, chorou a morte de uma das pessoas mais próximas que teve: Fidel Castro.

  1. A bola nunca é suja
  2. Amarás o futebol sobre todas as coisas
  3. Declararás amor incondicional a Diego e à beleza do futebol
  4. Defenderás a camisola da Argentina
  5. Espalharás os milagres em que ele jogou e as suas camisolas sagradas
  6. Honrarás os templos sagrados onde ele jogou e as suas camisolas sagradas
  7. Não proclamarás Diego como membro de nenhuma equipa
  8. Pregarás e espalharás os princípios da Igreja Maradoniana
  9. Usarás Diego como o teu segundo nome
  10. Chamarás de Diego o teu primeiro filho

“Os políticos são públicos, eu sou popular”. Como Maradona tomou conta do futebol em dez anos

Começou no Estrella Roja, passou pelo Los Cebollitas, acabou a formação no Argentinos Juniors. Quando tinha apenas dez anos, foi pela primeira vez referido nas páginas do Clarín, que via ali “um miúdo com porte e classe de craque” – mas a quem chamou por engano Caradona. Fazia o que queria e o que lhe apetecia da bola, com ou sem adversários da frente, e esse talento natural fora do comum garantiu-lhe o convite para um dos programas com maior audiência na altura, o Sábado Circulares. Foi no Argentinos Juniores que fez os primeiros anos como sénior antes de saltar para o Boca Juniors. Pouco tempo, como não poderia deixar de ser (mas ainda foi campeão).

Boca, Nápoles, Barcelona e o mundo. A glória de Maradona em 10 imagens

Na altura, Diego Maradona já era demasiado grande para a Argentina e mudou-se para o Barcelona, onde ganhou uma Taça, uma Taça da Liga e uma Supertaça em duas temporadas. Em 1984, depois de uma grave lesão no tornozelo, uma batalha campal a seguir a um jogo com o Athl. Bilbao valeu um castigo de três meses ao argentino e precipitou uma decisão que mais tarde seria muito lamentada na Catalunha: José Luis Ñúnez aceitou uma proposta do Nápoles para assegurar o médio ofensivo, que se sentia injustiçado em Espanha. O que começou torto endireitou-se porque foi essa decisão que mudou o percurso do futebol mundial na década de 80.

Diego Maradona Napoli v Stuttgart UEFA Cup Final 2nd Leg 1989

Maradona e Nápoles, o casamento menos óbvio e mais perfeito que o futebol mundial alguma vez conheceu

Maradona dizia que os políticos eram públicos e que ele era popular. Afinal, e se nunca teve qualquer problemas em dizer o que queria com os pés, haveria razão para não ser assim quando falava? Não. Nada, nenhuma. E foi por essa forma de estar e por essa maneira de ser que a ligação entre o génio argentino e o Nápoles foi um dos maiores casamentos alguma vez vistos entre um jogador estrangeiro e um clube, quase como se Diego assumisse a liderança da revolta dos descamisados do sul de Itália que há muito se queriam revoltar contra o monopólio dos clubes mais ricos, fortes e poderosos do norte. Faltava o capitão, a referência, aquela inspiração que fosse capaz de agarrar numa equipa, no clube e numa cidade para chegar onde nunca tinham antes chegado. O Nápoles foi duas vezes campeão com Maradona, como não mais voltou a ser. O Nápoles ganhou uma UEFA, como não mais voltou a ganhar. Ainda hoje, Nápoles olha para El Pibe como um Deus temporal que mostrou o infinito.

Futre e as memórias com Maradona: “Um génio que me mudou a vida em 1986”

Costuma dizer-se que ninguém ganha sozinho mas se existiu uma grande prova ganha sobretudo por um jogador foi o Campeonato do Mundo de 1986, a primeira grande conquista de Maradona antes até dos triunfos no Nápoles. Sozinho, Diego ganhou. Contra um, contra dois, contra cinco como aconteceu com a Inglaterra. Mas se os estádios mexicanos estavam rendidos ao astro argentino, os recintos italianos, quatro anos depois, trouxeram uma realidade diferente. Na fase de grupos, contra a União Soviética e a Roménia, o San Paolo esteve com Diego. Nas meias, com a Itália, dividiu-se mas mais para os transalpinos (como seria natural). No jogo decisivo, em San Siro, Milão não parou de assobiar o 10 quase que expressando toda a frustração pelos títulos tirados ao norte com um pé esquerdo que fazia milagres. A derrota com a RFA foi uma das mais custosas da carreira, que mudaria de ares pelas piores razões: após ter acusado positivo para cocaína em março de 1991, foi suspenso por 15 meses.

Da mão de Deus a incríveis chapéus. Dez dos melhores golos de Maradona

O Nápoles para Maradona deixou de ser um Nápoles de Maradona. E Maradona, com a mesma frontalidade com que sempre defendeu uma cidade que o acolheu como um filho divino adotivo, quis sair. Foi para o Sevilha, onde enchia estádios só para verem o aquecimento à parte como se fosse um malabarista com a bola nos pés e na cabeça, de meias em baixo e chuteiras desapertadas. Em 1994, mais uma vez, a cocaína e durante o Mundial dos EUA. Nova suspensão e final de carreira entre o Newell’s e o Boca Juniors, onde ainda hoje entrava e a Bombonera caía perante o elevar da ovação para uma figura que também aqui era endeusada como mais nenhuma mas que gostava de ser o mais mundano possível, de charuto na mão, às vezes a tirar a camisola e a fazer coreografias tendo a mesma na mão como se fosse mais um hincha. Porque Diego também era isso, mais um hincha.

Argentine former footballer Diego Marado

Maradona a vibrar na Bombonera pelo seu Boca Juniors, de tronco nu e charuto. Como se fosse um hincha. Mais um

Como treinador, chegou a ser selecionador da Argentina entre 2008 e 2010, passou por clubes argentinos (Racing e Gimnasia, o último conjunto), esteve em equipas mais modestas como Al Wasl, o Al-Fujairah ou o Dorados. Nunca teve grandes resultados mas outra coisa não seria de esperar: como poderia aquele que foi o último ícone da era das “ditaduras táticas” montar uma estratégia se o segredo para se tornar um génio em campo passou por nunca ter confinado às amarras das necessidades coletivas (e isto não significa que não ajudasse as formações, simplesmente era demasiado bom e ganhava muitas vezes sozinho com dez companheiros a tentarem recuperar a bola para lhe oferecer de bandeja). Nem isso foi levado a mal. Nem isso nem os sucessivos casos de uma figura que até na forma como reconhecia a culpa pelos erros que cometia era idolatrado. Como disse Pablo Aimar, “em vez de super heróis, todos quisemos ser Maradonas”. Também por isso, mais do que nunca, hoje fomos todos Maradona.