Título: “Sempre Estrangeira”
Autor: Claudia Durastanti
Editora: Dom Quixote
Páginas: 272
Preço: 16,60€
Sempre Estrangeira, de Claudia Durastanti (1984), já conta alguns meses de publicação, passou quase esquecido no primeiro confinamento, mas foi relançado agora com a vinda da autora da Portugal. A narrativa centra-se na vida de uma família, partindo do olhar da narradora, numa “rememoração da sua educação numa família disfuncional entre Brooklyn e Basilicata”, uma aldeia em Itália. Filha de pais surdos que se separam pouco depois de terem os filhos, a protagonista vive uma infância quase errática entre os dois lugares e os dois pais.
A mão que conduz a narrativa é firme e o romance realiza-se numa escrita elegante e funcional: segura, porque não diz a mais; estruturada, porque não diz a menos. Portanto, no exercício a que se propõe, Durastanti é competente.
Escolher o 2eu” como centro da narrativa obriga sempre a literatura a perder algum do seu espaço potencial, já que lhe fica vedado o recanto a que só ela tem acesso. Ao invés da criação de uma personagem que um leitor possa entender e debater, conhecendo-a por dentro, levamos fragmentos da ação de alguém. Ou seja, em vez de um registo que ambicione o intemporal, fica uma marca forçosamente temporal, os pontos que alguém escolheu no ano X, e, ainda que a autora mostre um olhar incisivo, atento ao mundo, a narrativa nunca foge desse olhar. Através dele, desfia-se uma vida por via dos lugares por onde essa vida passou: as cidades que mudam, as referências que ficam, os laços que se fazem, as raízes que se levantam do solo.
A narrativa de Sempre Estrangeira leva-nos a uma literatura política sem artifícios, que o é só porque a vida tem política, e realiza-se através de uma personagem que fala na primeira pessoa mas que parece mais servir para contar a história do que para ser alguém. Assim sendo, a primeira pessoa serve para quê?
O facto é que Durastanti não precisa de ir ao extraordinário para não escrever banalidades, e até consegue surpreender com frases que aparecem mansas mas que são visões do mundo: “Não sabia cortejar as miúdas da sua idade, que não tinham ainda o corpo marcado pela renúncia” (p. 32); “Enquanto os meus contemporâneos perdiam os amigos para as drogas, eu perdia-os para Jesus Cristo” (p. 124); “Mersault nunca esteve sozinho naquela praia em que disparou contra um árabe; tinha os fantasmas em revolta a fazerem-lhe companhia” (p. 164). O problema é que na auto-ficção não há milagres. Mesmo que um autor procure a redenção, o que denuncia os seus propósitos e menoriza as potencialidades da ficção, o romance nunca extrapola a sua vida. Knausgård será o maior nome de referência, ao mesmo tempo que a exceção: no seu caso, o leitor segue uma cabeça ao invés de receber meia dúzia de dados biográficos que, na maior parte dos casos, se referem às dores ou aos méritos dos biografados.
Não é o caso de Durastanti, que, logo à cabeça, partindo de uma história, parece conseguir anular a primeira pessoa que a conta. Muitas vezes, esta personagem (ou este sujeito) não parece ativa na história, sendo o recetáculo das coisas que acontecem. É difícil defini-la. Existe na narrativa só para ser voz, o que pelo menos a liberta dos grilhões do auto-biográfico, não caindo na armadilha da passerelle do “eu”. Partindo desse ponto, há um olhar aberto ao mundo, e o de Durastanti é livre, descomplexado e muitas vezes surpreendente, tendo a autora encontrado um equilíbrio dentro da estratégia narrativa. Esse olhar será dos pontos fulcrais do romance, já que é a própria protagonista que assume a prevalência da observação: “Nada me levava da esfera da observação para a da emoção. O único pensamento fixo era dedicado à maneira como a classe se revoltava na casta” (p. 140).
É sempre um perigo usar o material biográfico per se para a escrita, sob a hipótese de se perder a capacidade de se outrar ou extrapolar, mas Durastanti conseguiu usar a memória como fundação de uma relação dialógica. Não ruminando, permitiu um plano para a exegese textual.
Ao longo do romance, passa ao de leve pela violência, tema que parece estar a dominar a narrativa italiana coetânea que tem chegado a Portugal (Donatella di Pietrantonio, Rosa Ventrella e, claro, Elena Ferrante). Não parte daí para potenciar ou permitir a narrativa, mas porque o assume como aspeto da vida. Daí que se chegue a um ponto de subtileza encantadora: “Não há um único ato de violência na minha vida que eu consiga recordar sem me rir” (p. 129). Pouco depois, é impossível não lembrar o terceiro livro da tetralogia de Ferrante: “Tornara-me uma amiga violenta, uma filha insuportável e, se não tivesse partido para frequentar a universidade, ter-me-ia tornado uma carta oficial do tarô, uma personagem reduzida à literalidade da sua existência, tal como a minha mãe” (p. 130).
Esta ideia da “personagem reduzida à literalidade da sua existência” é apenas uma das que mostram os contrastes de uma vida que se divide entre dois lugares tão distintos, e assim se expande. Será este um dos aspetos de maior interesse do romance, já que o movimento de expansão não parece boicotar a criação de raízes. Uma cidade moderna servirá como pretexto para o anonimato, e esse anonimato funciona como conforto: “Para mim, peregrinar de um ponto a outro numa cidade moderna não passa da busca de um local suficientemente anónimo e confortável onde ficar o tempo necessário para conseguir separar de mim essa caloira e fazê-la sentir-se inoportuna” (p. 156).
Ser-se anónimo num lugar poderá implicar a rejeição de raízes que indiquem a pertença, e daí que a protagonista chegue a envergonhar-se de dizer onde vive, já que tal a faz sentir “como se reclamasse uma autoridade sobre esse lugar, quando não a tenho” (p. 156). Quanto mais vive em Londres, mais a sua “síndrome de impostura aumenta” (p. 156). A relação com o território será, portanto, aquela que define a pertença do eu: “quando uma cidade nos repele, quando não conseguimos entrar nos seus mecanismos mais profundos e ficamos sempre do outro lado do vidro, surge uma sensação frustrada de mérito, que pode tornar-se uma doença” (p. 167). Este desfasamento justifica o título. Como a protagonista o dirá, há um problema em ser-se estrangeiro quando se é obrigado a sê-lo, “sinónimo de uma mutilação e um tiro de pistola que, sozinhos, demos a nós mesmos.” (p. 167).
A autora apresenta um romance em que se sente a intensidade do que é volátil, ao mesmo tempo que a angústia de um estar sem estar, ou de um não estar a querer estar muito. Pelo caminho, vai dando pistas que podemos adivinhar auto-referenciais, como quando a protagonista refere o professor que disse que o verdadeiro suicídio não era morrer, mas queimar os próprios diários. A dada altura, usou a palavra “finction” para definir algo que é construído, ao invés de falso. E não será isso a auto-ficção?