Já tinha sido um dado relevante no discurso de abertura de Jerónimo de Sousa e tornou-se ainda mais evidente durante a intervenção de Ilda Figueiredo, histórica dirigente comunista e membro do Comité Central do partido: o PCP deixou cair praticamente todas as referências à Coreia do Norte.
Uma análise comparativa entre as três últimas teses do partido (2012, 2016 e 2020) comprovam-no: o regime norte-coreano foi apagado do último documento estratégico do partido, um afastamento importante num partido que até há bem pouco tempo tinha dificuldades em classificar a Coreia do Norte como ditadura — “Primeiro tínhamos de discutir o que é a democracia”, chegou a responder Jerónimo de Sousa, ainda em 2019.
Escreviam os comunistas em 2012:
No quadro da resistência ao domínio hegemónico do imperialismo, assumem particular relevância no plano internacional vários países (China, RPD da Coreia, Cuba, Laos e Vietname) que, não se integrando no sistema capitalista, constituem objetivamente um factor de contenção dos seus propósitos de domínio planetário. Afirmando como orientação e objetivo a construção de uma sociedade socialista e mantendo no essencial o predomínio da propriedade social dos meios de produção, estes países enfrentam hoje novos desafios, problemas e contradições não apenas inerentes aos seus próprios processos mas agravados pela pressão económica e financeira do capitalismo e da sua crise, e muito ampliados por campanhas de desestabilização e ofensiva ideológica.”
Em 2016:
Os países que afirmam como orientação e objetivo a construção de sociedades socialistas – China, República Popular Democrática da Coreia, Cuba, Laos e Vietname – constituem, na sua grande diversidade de situações quanto ao grau de desenvolvimento económico e social e modelos sócio-políticos, um importante fator de contenção aos objetivos de domínio mundial do imperialismo. É hoje ainda mais claro que estes países são alvo de um conjunto de manobras de pressão económica e financeira, de desestabilização e ingerência, de ofensiva ideológica e de cerco geoestratégico que condicionam, a par com os efeitos da crise do capitalismo a que não estão imunes, o seu próprio desenvolvimento e opções de política económica e relações internacionais.”
Em 2020, no entanto, não há qualquer referência à Coreia do Norte, nem tão pouco a Laos e ao Vietname nas teses que são discutidas no XXI Congresso do PCP, o documento estratégico do partido e que norteia a ação política do partido nos quatro anos que se seguem ao congresso comunista.
Houve uma exceção, ainda assim. No segundo dia congresso do partido, os comunistas aprovaram uma moção pela “paz e e solidariedade socialista” para com os povos da “República Democrática da Coreia, Cuba, Síria, Venezuela, Bolívia, Chile, Colômbia, Nicarágua, Chipre”, entre outros, onde os comunistas consideram que existe uma tentativa de restringir liberdades, “promoção de anticomunismo, ao mesmo tempo que promovem forças fascizantes”. Em 2012 e 2016, os comunistas portugueses elegiam a Coreia do Norte como um dos importantes fatores de “contenção” do imperialismo; agora, manifestam solidariedade para com esses povos. É um mar de diferença. Em 2020, a Coreia do Norte foi quase apagada do mapa comunista.
A relação com a China mudou?
Também a relação com a China parece ser agora mais distante. Em 2016, os comunistas elegiam a China como a primeira barreira contra o avanço do imperialismo norte-americano. Escreviam os comunistas a esse propósito:
O peso económico da China, e da sua participação na divisão internacional do trabalho, continua a representar um fator de primeiro plano no desenvolvimento mundial, sendo de assinalar o seu ativo papel nas relações internacionais, como no quadro dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), e noutros espaços de articulação, que contrariam as políticas do sistema de Breton Woods dominado pelos EUA e outras potências imperialistas.”
Nas teses que discutem neste XXI Congresso do PCP, o partido é muito mais contido nos elogios ao regime de Xi Jinping. Há apenas duas referências à China e para denunciar o “desenvolvimento de uma perigosa escalada de confrontação promovida pelos EUA contra a República Popular da China, indissociável do crescente peso e papel deste país no plano internacional”. Nada mais.
Apesar da ausência de referências à Coreia do Norte e de um distanciamento em relação à China, os comunistas terminam as teses do XXI Congresso com um manifestação de solidariedade para com “países que, dirigidos por partidos comunistas, afirmam o objetivo da construção do socialismo”.
De todo o modo, e apesar de nem sempre totalmente evidente, o PCP vai refletindo nas suas teses uma evolução na forma como dialoga com a sua história, heranças e com outros partidos comunistas. Era isso mesmo que explicava aqui o Observador a propósito do regime soviético: Álvaro Cunhal fê-lo a propósito de Estaline; na década de 90, depois da queda do Muro de Berlim e com o declínio da União Soviética, já o PCP denunciava os “crimes” e as “trágicas experiências” em países socialistas; em 2016, alertavam para o erro que seria “copiar a experiência da Revolução de Outubro” e modelos aplicados noutros países.
Nas teses discutidas neste XXI Congresso do PCP não é diferente: “A experiência histórica revelou quão extraordinariamente complexo, irregular e acidentado é o processo de emancipação social dos trabalhadores e dos povos, demonstrando igualmente que os caminhos da revolução, sendo diversificados e seguindo fases e etapas diferenciadas de país para país (…) Tendo em conta a experiência do movimento comunista e revolucionário internacional e as experiências da construção do socialismo, é a partir da realidade concreta portuguesa e da própria experiência dos comunistas portugueses que o PCP aponta o caminho para o socialismo e as características fundamentais da sociedade socialista em Portugal”, remata o PCP.
Centenário da Revolução de Outubro. Os grandes elogios (e as críticas) do PCP à URSS