O património imóvel classificado em Portugal pode gerar o dobro dos visitantes e o triplo da receita de bilheteira, conclui um estudo divulgado esta quarta-feira sobre o valor económico e social do setor.

Intitulado “Estudo Património Cultural em Portugal: Avaliação do Valor Económico e Social”, foi realizado entre 2018 e 2019 por uma equipa composta por Catarina Valença Gonçalves, diretora da Spira, empresa privada da área do património cultural, José Maria Lobo de Carvalho, diretor do Observatório do Património, e José Tavares, professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa — School of Business and Economics, e financiado pela Fundação Millennium bcp.

O estudo — divulgado pelos autores, numa apresentação online — baseia-se num universo de 4.575 bens imóveis classificados existentes nos 308 concelhos do país e estima ainda que este património poderia gerar um emprego a tempo inteiro por cada 25.000 visitantes/ano por cada unidade patrimonial, aumentar em 3% os empregos diretos em hotelaria e 3,4% as dormidas por município.

Contactada pela agência Lusa sobre os resultados do estudo e o universo dos dados em que os investigadores se basearam, Catarina Valença Gonçalves comentou que se trata de um documento pioneiro em Portugal, onde, até hoje, “não existem estatísticas para o património cultural, nem uma política de recolha a nível nacional”.

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A responsável apontou “grandes dificuldades” em conseguir dados, sobretudo a nível local, porque na sua maioria são recolhidos por várias entidades, como a Direção-geral do Património Cultural, as direções regionais de Cultura ou a Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural de Lisboa, “mas não há um organismo que reúna todos os dados do país, de todos os tipos de património classificado”.

As estimativas basearam-se em dados estatísticos existentes referentes aos visitantes destes 4.575 imóveis classificados entre 2015 e 2017, aos quais adicionaram outros dados sobre a caracterização económica e social da população, e os resultados de um inquérito realizado às autarquias dos 308 concelhos do país.

Quanto à identificação do que designa por “pontos patrimoniais”, desde museus, palácios, monumentos, entre outros, tomaram como referência dados de 2019.

O estudo faz uma caracterização do “parque” do património cultural construído de Portugal aos dias de hoje, considerando como universo patrimonial para efeitos de análise o património imóvel e classificado 4.575 bens imóveis classificados num total de 38.015 monumentos culturais de 308 concelhos.

Estes 4.575 imóveis classificados são considerados “o supra-sumo do património imóvel do país”, nas palavras da investigadora, de todas as tutelas, desde o Governo, as autarquias, privados, ou outros, com vários tipos de classificação, mas a maioria não tem entradas controladas ou não está aberta ao público.

“Atualmente estão abertos ao público e com entradas controladas 250 destes pontos patrimoniais, e foi nesses que nos baseámos para estimar o potencial económico e social do universo de 4.575”, explicou Catarina Valença Gonçalves.

A estimativa dos visitantes e de receitas baseou-se nos dados de 2019, de 16,5 milhões de entradas nestes imóveis classificados, e tendo por base apenas a bilhética — com um valor médio de quatro euros para cada entrada – não contando com as receitas de merchandising, aluguer de espaços, ou cedência de imagens.

“O nosso objetivo era responder à questão: se fossem abertos ao público os outros 4.325 monumentos, quantos visitantes poderíamos ter, e respetivas receitas de bilhética?”, indicou à Lusa.

Com base naqueles dados quantitativos e qualitativos obtidos para “avaliar com objetividade” o valor económico e social do património cultural de Portugal, e a sua importância para desenvolvimento do país, a equipa quis criar “um retrato abrangente, aprofundado e credível” sobre este potencial, não só em termos de geração de receitas, mas também de criação de emprego direto.

As conclusões apontam para “um potencial muito significativo, que vem confirmar este recurso como um ativo estratégico importante”, sublinhou a diretora da Spira.

Ainda segundo as estimativas do estudo, “um número considerável de municípios pode gerar mais de uma centena de milhar de visitas a património classificado, em alguns casos, em municípios com significativo património pouco aproveitado”, constatou a equipa de investigadores.

Catarina Valença Gonçalves ressalva que a maioria dos “pontos patrimoniais” mais visitados estão localizados no litoral do país e em grandes cidades como Lisboa e Porto, “mas todo o património está bastante disperso pelo país, nos seus vários níveis de classificação”.

Estudo recomenda estratégia nacional para “ativo adormecido”

O estudo recomenda também a criação de uma estratégica nacional que passe pela educação dos jovens e gestão de um “ativo totalmente adormecido no país”. “Propomos uma completa alteração do paradigma atual na área do património cultural imóvel classificado, que passa pela educação, a formação profissional, uma gestão de proximidade, a abertura aos privados e a novas formas de financiamento”, declarou Catarina Valença Gonçalves, contactada pela agência Lusa.

Para a responsável do estudo realizado em equipa desde 2018, as recomendações para os próximos 25 anos do setor passam por novas políticas públicas estratégicas e interministeriais – nomeadamente uma Estratégia Nacional para o Património Cultural, Plano Nacional de Turismo Cultural e Paisagístico, e um Programa de Educação Patrimonial – “que permitam desenhar e pôr em prática medidas de transformação do património cultural de recurso passivo em ativo estratégico de desenvolvimento sustentado do país”.

“Essencial e imediata é a necessidade de criar um público consumidor de património cultural para o futuro, já que temos uma das taxas mais baixas da Europa. Educar os públicos, sobretudo os mais jovens, é essencial para desenvolver um mercado interno de consumo”, defendeu, apontando “uma grande ausência de visão estratégica” do Estado nos últimos 50 anos.

Catarina Valença Gonçalves ressalva que “não se trata de um problema apenas do atual Governo, mas de políticas perpetuadas ao longo de várias décadas, não aproveitando um grande potencial económico e social que pode gerar até o triplo das receitas, e mais emprego a nível local”.

A especialista recordou que “existe um potencial público de 10 milhões de pessoas para um património cultural que é, em grande parte, visitado em 70% das entradas por estrangeiros”, sobretudo em Lisboa, Sintra e Porto.

Outras medidas consideradas urgentes pelos investigadores são a mudança de relação com o património cultural, de forma a difundir a ideia de que “o direito à fruição e à participação na gestão deste bem que é, por natureza, coletivo”.

“Todos contam para o património cultural, independentemente da sua natureza — coletiva, individual, privada, pública, mista, seja na fruição seja na gestão e financiamento”, acrescentou Catarina Valença Gonçalves, dando como exemplo a aquisição de um quadro, em 2016, para o acervo do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, através de uma campanha de contribuições da sociedade civil.

Na gestão, defendem a abertura às “forças vivas de cada território concreto”, sejam de natureza cooperativa, cooperação entre diferentes proprietários e cooperação intermunicipal, “sem desresponsabilizar o Estado nas suas missões públicas”, e, por outro lado, o escoamento do tráfego turístico dos polos de Lisboa e Porto, zona fronteiriça e Algarve para o interior do país.

Os investigadores apontam, no documento, que, “apesar da evolução nos modelos institucionais das últimas duas décadas no sentido da maior autonomia de gestão”, através de fundações e empresas públicas, o modelo de financiamento do setor patrimonial “continua muito dependente do Orçamento do Estado e em níveis aquém das reais necessidades”.

Sugerem modelos alternativos de financiamento, assinalando que “o mecenato cultural, tem demonstrado reduzida eficácia e a venda de imóveis históricos tem servido sobretudo para financiar o défice do Estado central”.

Em particular, recomendam a revisão do modo de funcionamento da “Lotaria do Património”, prevista no Orçamento do Estado para 2021, proposto pelo atual Governo: “A participação dos cidadãos na esfera do património cultural não pode ser senão precisa, concreta, objetiva e mobilizadora desse reduto poderoso que é o sentimento de pertença e de identidade”.

“Anular estas dimensões pelo facilitismo que é aportado pela dinâmica de jogo de sorte e de azar — nos quais os portugueses são pródigos — desbaratará essa oportunidade de estabelecimento de uma relação direta com quem, mesmo que por motivos outros — o ganho de um prémio de lotaria — efetivamente dá e contribui financeiramente para o património cultural”, argumenta a equipa de investigadores.

Chama ainda a atenção, no documento, para os problemas de insuficiência de recursos humanos que o património cultural do país tem vindo a enfrentar, e dá como exemplo os cerca de 825 funcionários da Direção-Geral do Património Cultural, atualmente com um perfil de média de idade de 55 anos.

“Torna-se imperativo uma maior capacitação técnica dos seus quadros, um reforço e rejuvenescimento com a entrada de novos elementos, e uma necessária melhor distribuição territorial dos mesmos — atendendo ao princípio da gestão de proximidade apregoado — com possível mobilidade para as autarquias ou Direções Regionais de Cultura, capacitando-as dos recursos humanos neste campo de que raramente dispõem em quantidade e qualidade suficientes”, advogam.

Para o desenvolvimento de projetos patrimoniais de base territorial, consideram que “quanto maior o número de parceiros, maior a notoriedade e a capacidade de gerar atratividade”, e sublinham a importância da certificação de produtos de turismo cultura, e uma aposta na formação profissional com alteração do Catálogo Nacional de Qualificações.

“Os jovens que nascem no interior do país não têm acesso à formação na área do património, mas muitas vezes estão próximos dele, nas localidades onde vivem, e poderiam ali trabalhar. Em vez disso, são muitas vezes obrigados a procurar as grandes cidades”, lamentou, apelando à “fixação deste ativo de recursos humanos que vai ser cada vez mais necessário para o futuro”.

O estudo, de 300 páginas, descreve detalhadamente a distribuição geográfica do património imóvel português, colocando-o em correspondência com características sociais, económicas e demográficas do país, ao nível municipal.

De acordo com a equipa, o documento ficará disponível a partir desta quarta-feira online para todos os interessados.