O professor Marcelo chamou Eduardo depois de lhe dar uma nota média a Direito Constitucional, queria convencê-lo a ir a oral para fazer melhoria de nota. Mas o aluno não quis, manteve o 15 ou 16 e seguiu caminho. Esta quinta-feira a nota do mesmo Marcelo ao ministro, outrora aluno, não foi sequer média. Mas desta vez Eduardo Cabrita foi salvo de qualquer chumbo pelo colega (e chefe) do Governo e da Faculdade de Direito, António Costa. O trio que já se cruzou noutras paragens, desde 2017 voltou a trabalhar mais de perto, depois de Cabrita assumir o Ministério da Administração Interna — curiosamente após a saída de Constança Urbano de Sousa e de uma pressão imensa do Presidente Marcelo sobre o primeiro-ministro António Costa para a sua substituição.

Foi na segunda vaga dos fatídicos incêndios desse ano, quando a ministra escolhida por Costa na formação do seu primeiro Governo, em 2015, não resistiu à catástrofe, que o primeiro-ministro entregou a pasta mais sensível naquela altura ao seu amigo de longa data e camarada de partido que até então tinha como seu ministro Adjunto. Eduardo Cabrita sempre foi um dos elementos de confiança do primeiro-ministro. É um sanguíneo nas discussões no Conselho de Ministros e, nos últimos anos, era uma das vozes mais audíveis contra Mário Centeno nas reuniões do Governo que antecediam a entrega do Orçamento do Estado na Assembleia da República. Não foram, por isso, surpreendentes as declarações algo polémicas desta quinta-feira, com Cabrita a surgir no meio de uma tempestade na sua área governativa, com três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras acusados de homicídio qualificado do cidadão ucraniano Ihor Homenyuk, irado com a opinião pública quando era ele mesmo quem estava debaixo do foco.

“Isto aqui é para ninguém ver”. As 56 horas que levaram à morte de um ucraniano no aeroporto de Lisboa

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“Fui o primeiro a agir quando muitos estavam distraídos, confinados e desatentos”, declarou Cabrita numa conferência de imprensa depois da demissão da diretora do SEF. “Congratulo-me por ter estado quase sozinho perante o desinteresse de todos os comentadores e da generalidade da comunicação social e não ligaram nada ao que disse em março estejam agora preocupados com esta situação. Bem-vindos ao combate pela defesa dos direitos humanos“, atirou o ministro numa tentativa de sacudir dos ombros a pressão que recai sobre si.

O Presidente da República falou depois e não se mostrou sensível a esta argumentação. Disse que era preciso “apurar se se trata de um caso isolado ou se é um problema de todo o sistema”E “se for todo o sistema é preciso substituir por outro”, o que o Expresso confirmou ser um aviso de Marcelo sobre a manutenção do próprio ministro no cargo. Cabrita não desarmou e nem Costa que esta sexta-feira, logo de manhã em Bruxelas, quebrou uma das regras políticas mais citada além fronteiras e falou num assunto interno para agarrar o ministro no cargo.

Aliás, o próprio Eduardo Cabrita, sentado ao lado da ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, no final do Conselho de Ministros desta quinta-feira, ia olhando para ela de lado enquanto respondia aos jornalistas e dizia que só quem o tinha escolhido para o cargo o poderia tirar. Mostrava, assim, que não pretendia demitir-se e o primeiro-ministro demoraria apenas umas horas a confirmar que mantinha a “total confiança” no ministro.

Cabrita foi um dos mais fiéis apoiantes do desafio de António Costa a António José Seguro naqueles anos de 2013 e 2014 em que Costa estava como presidente de Câmara de Lisboa e ensaiava a tomada do poder socialista. O seu amigo de faculdade estava na altura no Parlamento, como deputado, e fez parte da tropa que mobilizou militantes para apoiar a candidatura do amigo de longa data.

Quando passado um ano de conquistar o PS, António Costa conseguiu montar a “geringonça” e ser nomeado primeiro-ministro, Eduardo Cabrita foi imediatamente chamado para o seu lado, como Adjunto, e com um lugar cativo na coordenação política do Governo. Foi desde então parte do núcleo que se reúne com o primeiro-ministro todas as semanas para alinhar estratégia e antecipar questões e é um dos que Costa foi sempre ouvido, em várias circunstâncias importantes da sua vida.

A amizade travou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa onde — lá está — ambos foram alunos de Marcelo Rebelo de Sousa. Desse tempo lembra, como uma das principais aventuras vividas com aquele que no futuro havia de ser o líder do PS, “o desafio associativo. Foi apaixonante retomar aquilo que foi uma ótica participada e que de algum modo antecipou a ‘geringonça’“, notou numa entrevista ao Observador em novembro de 2016. E isto porque no quadro associativo da altura, com estes já membros da Juventude Socialista, estavam pessoas como António Filipe, do PCP. Eduardo Cabrita sempre viveu num bastião comunista, o Barreiro, mas nunca se juntou a essa força.

Esta é a terceira vez que está no Governo com António Costa, mas a Administração Interna já é a quarta cadeira que Costa lhe estende. Esteve com ele quando, em 1999, o seu colega de Direito e já com pergaminhos na alta política (tinha sido secretário e ministro dos Estado dos Assuntos Parlamentares de António Guterres) o chamou para ser seu secretário de Estado da Justiça. O Governo acabou dois anos depois, no já conhecido “pântano”, numa noite autárquica de má memória para os socialistas. Nas eleições que se seguiram, concorre nas listas a deputado e entra no Parlamento pela primeira vez em 2002. Desde aí só não esteve nos corredores do Palácio de São Bento quando saiu para exercer funções governativas, como em 2005, quando Costa voltou a levá-lo para o Governo chefiado por José Sócrates, desta vez para a Administração Interna.

O Ministério com sede no Terreiro do Paço onde está desde 2015 não é, por isso mesmo, um local estranho a Cabrita, que passou lá entre 2005 e 2007, quando ocupou a função de secretário de Estado Adjunto e da Administração Local. Já nessa altura, Costa quis rodear-se — mais uma vez — apenas e só de nomes da sua inteira confiança e, com Cabrita, entraram também para o MAI José Magalhães (secretário de Estado Adjunto e da Administração Interna), Ascenso Simões (secretário de Estado da Administração Interna) e Fernando Rocha Andrade (para subsecretário de Estado).

De todos, Eduardo Cabrita é o único que hoje se mantém perto de António Costa que o manteve à frente do MAI no segundo Governo, apesar de ter feito sair a sua mulher, Ana Paula Vitorino que no primeiro elenco era ministra do Mar. As questões do family gate tinham ensombrado o seu Governo na primeira e não queria essa repetição. Em entrevista ao Observador, em agosto de 2019, Ana Paula Vitorino foi confrontada com o facto de, ao contrário do que então acontecia no Governo, a presença de marido e mulher constituir uma incompatibilidade na administração de uma empresa. A ministra respondeu assim: “Gostava de saber qual de nós os dois é que queriam despedir”. Acabou por ser ela a despedida. Ana Paula Vitorino garantia ainda, na mesma entrevista, que era imparcial nas decisões que tomava que envolviam o marido: “Sou a maior crítica do Eduardo”.

Ana Paula Vitorino, ministra do Mar e mulher do MAI. “Sou a maior crítica do Eduardo [Cabrita]”

O primeiro-ministro reconhece-lhe competência técnica, mas também capacidade política para se manter à frente de um Ministério pesado na estrutura governamental mesmo quando está debaixo de fogo. Mas em 2017, em plena crise dos fogos, foram também várias as vezes que segurou Constança Urbano de Sousa mantendo confiança na ministra por várias vezes. Em julho desse ano, por exemplo, disse mesmo ser “um bocado infantil essa ideia de que as consequências políticas são a demissão de ministros”. “A principal consequência política num Governo é fazer aquilo que falta fazer”, contrapôs então o primeiro-ministro que perante nova tragédia e nova tentativa de manter a ministra no cargo acabou por aceitar a sua demissão. Agora falta fazer uma reforma no SEF e Marcelo já avisou uma primeira vez que “se há uma realidade, como um todo, que enquanto sistema se vem a concluir que globalmente não funciona, então tem que ser substituída por outra e provavelmente quem protagonizou a primeira não tem condições para protagonizar a segunda”.