O Centro de Arte Oliva quer organizar uma exposição sobre “o mais reconhecido autor da Arte Bruta portuguesa”, Jaime Fernandes (1899-1969), mas com a obra dispersa por coleções não identificadas, apelou esta quinta-feira ao envolvimento dos proprietários no projeto.
Segundo adianta à Lusa a direção desse equipamento cultural do distrito de Aveiro, que tem em depósito uma das maiores coleções mundiais de Arte Bruta, está a ser feito um esforço nacional no sentido de identificar colecionadores que possuam obras do autor em causa, conhecido em particular pelo filme documental de António Reis, “Jaime”, mas tem sido mais fácil localizar os seus trabalhos no estrangeiro.
A diretora do Centro de Arte Oliva, Andreia Magalhães, explica: “O projeto de exposição encontrou o entusiasmo e a rápida adesão de seis colecionadores privados europeus — da Áustria, França e Suíça — e também da Collection de L’Art Brut de Lausanne, na Suíça. Já em Portugal, localizar obras de Jaime Fernandes tem sido mais difícil, porque já se passou um grande intervalo de tempo desde a exposição de 1980, na Fundação Calouste Gulbenkian, que reunia desenhos que então estavam na posse de três famílias e que hoje estarão mais dispersos”.
A campanha “À procura de Jaime Fernandes” propõe-se assim descobrir mais obras do autor que, tendo dedicado a sua juventude ao trabalho rural, foi diagnosticado com esquizofrenia paranoide aos 38 anos, esteve internado mais de três décadas no Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda, em Lisboa, e revelou nos seus últimos quatro anos de vida um particular interesse pelo desenho.
Nas suas composições recorria a esferográficas de várias cores, preenchendo com uma densa trama de linhas as figuras e os fundos de papéis de pequeno formato.
Essas pequenas dimensões determinaram os contornos de muitas das figuras que o artista concebeu, justificando que as de perfil humano apresentem os braços descidos ou levantados, e que as de silhueta animal exibam caudas caídas – o que, no seu conjunto, revela que as atitudes expressas no desenho decorriam da delimitação física do seu suporte.
Os temas que Jaime Fernandes mais explorou, por sua vez, refletem uma busca pelo sentido das suas origens, memórias do seu passado na Beira Baixa, a angústia da clausura e a violência da sua demência.
Jaime e a sua obra são o núcleo de uma curta-metragem documental antropológica, realizada por António Reis, com Margarida Cordeiro, em 1974, que constitui um dos filmes-chave do cineasta e do Novo Cinema português, na área do documentário, dos anos de 1960-1970.
Agora, com vista a lançar em maio a exposição “Vi uma cadela minha com lobos”, os colecionadores estrangeiros de Jaime Fernandes “não só garantiram ao Centro de Arte Oliva a cedência das suas obras como estabeleceram contactos com outros proprietários” que a instituição portuguesa ainda não tinha identificado, assumindo-se como “intermediários” na localização de mais pinturas e desenhos do autor.
Andreia Magalhães realça, aliás, que esses proprietários estrangeiros se tornaram “imediatamente cúmplices e colaboradores do projeto, porque partilham da ideia de que reunir os desenhos de Jaime Fernandes será um acontecimento e compreendem a importância e delicadeza da sua obra”.
No mesmo sentido, essa responsável acrescenta que “a maior prova da importância da exposição é o interesse que museus europeus estão a revelar em acolhê-la e apresentá-la” após a sua estreia em São João da Madeira.
É precisamente por essa recetividade internacional que a diretora do Centro de Arte Oliva alerta: “Seria uma pena não encontrar em Portugal a mesma receção que o projeto está a encontrar fora do país, e perder a oportunidade de reunir os desenhos deste artista”.
A maior exposição alguma vez realizada sobre Jaime Fernandes foi a mostra de 74 desenhos organizada em 1980 pela Fundação Calouste Gulbenkian. Um ano depois iniciou-se a divulgação internacional da obra do autor, quando 51 dos seus trabalhos foram selecionados para a 16.ª Bienal de São Paulo.
Mais tarde, em 1988, foi o galerista norte-americano Gérard A. Schreiner a incluir o artista português numa coletiva de Arte Bruta que levou a Nova Iorque e Basel obras de artistas de referência como Henry Darger, Johann Hauser, Miguel Hernandez, Bill Taylor e Adolf Wölfli.
Atualmente, em Portugal, estão localizados apenas 11 desenhos de Jaime Fernandes: quatro, na coleção da Gulbenkian, dois encontram-se na Coleção Treger Saint Silvestre (que é a que está em depósito de longo prazo na Oliva), outros dois são propriedade do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa e os restantes três pertencem a uma coleção particular de Lisboa.
No estrangeiro estão identificados 25 desenhos do mesmo autor, distribuídos por museus e entidades privadas.
No filme de António Reis, recentemente exibido em festivais como o DocLisboa e o Porto/Post/Doc, e em mostras do Instituto Moreira Salles, em São Paulo e Rio de Janeiro, e no Museu Rainha Sofia, em Madrid, o cineasta recorda uma afirmação do artista, sobre os seus desenhos: “Há fotografias de nitidez. Estas são obscuras, feitas por mim, conforme a minha vontade”.