Quando um cantor de ópera atinge o estatuto de vedeta é frequente que grave um álbum de Natal, outro de canções napolitanas e até um pot-pourri de êxitos pop, que lhe permitem cativar público para lá do círculo dos apreciadores de música clássica e dilatar ainda mais a fama e a conta bancária. No final da década de 1990, a mezzo-soprano Cecilia Bartoli (n.1966, Roma) alcançara o estatuto de estrela de primeira grandeza, sobretudo através do desempenho nas óperas de Mozart e Rossini, mas em vez de seguir pela avenida ampla e bem iluminada, decidiu desbravar o seu próprio caminho: com a ajuda do musicólogo Claudio Osele, passou muitos dias na Biblioteca Nacional de Turim, a remexer em vetustas partituras de óperas de Vivaldi. Embora não fosse segredo que Vivaldi compusera numerosas óperas, estas pouco interesse despertavam junto do público e dos músicos, mesmo nos que tinham um fraquinho pelo Barroco, e havia até “autoridades” que reduziam, de uma penada, toda a ópera barroca a uma penosa sucessão de frivolidades e de árias acrobáticas, destinadas a satisfazer o gosto pelo espalhafato de um público ignaro, embora admitissem, relutantemente, que as óperas de Handel tinham belas melodias.
Percebeu-se que esta visão estava completamente errada quando, em 1999, surgiu The Vivaldi Album (Decca), com um repertório praticamente desconhecido, resultante das “escavações arqueológicas” de Bartoli, e em que a mezzo-soprano se aliava ao ensemble de instrumentos de época Il Giardino Armonico, de Giovanni Antonini, que vinha a despertar a atenção, desde o início da década de 1990, pelas suas interpretações vigorosas, rugosas e de colorido vivo da música instrumental de Vivaldi.
[“Dopo un’orrida procella”, de Griselda, em The Vivaldi Album:]
O álbum, que demonstrava que Vivaldi tinha sido tão inventivo e versátil na ópera como nos concertos para violino, poderia ter sido um fiasco, ou apenas ter obtido um modesto sucesso nos círculos “barroquistas”, mas converteu-se num best-seller, foi cumulado de elogios pela crítica e distinguido com um Grammy, excedendo as expectativas de Bartoli e da Decca. The Vivaldi Album marcou o início da reabilitação da ópera de Vivaldi, bem como de uma constelação de compositores seus contemporâneos, cujas incontáveis partituras tinham, até então, sido pasto de fungos e peixinhos-de-prata.
Ao mesmo tempo, marcou também uma nova fase da carreira de Bartoli, que, não descurando o repertório mainstream que lhe dera fama, se tornou numa paladina de compositores olvidados do Barroco e dos alvores do Classicismo (ou de facetas obscuras de compositores conhecidos) e uma entusiasta da “interpretação historicamente informada” (HIP, na sigla inglesa), estabelecendo profícuas colaborações com os mais prestigiados ensembles e maestros desta área e registando em disco dezenas de árias que não eram tocadas há dois ou três séculos. É do empenho de Bartoli, ao longo de mais de duas décadas, na área da música barroca – para o teatro ou para a igreja – que nos dá conta o álbum Queen of Baroque, agora editado pela sua editora de sempre, a Decca.
Queen of Baroque é um disco paradoxal: está recheado de música magnífica em interpretações inultrapassáveis, mas tem pouco que o recomende, pois, dos seus 78’40. só 6’01 são inéditos: são as árias “E l’honor stella tiranna” [faixa 1], da ópera I trionfi del fato (1695), de Agostino Steffani, com I Barocchisti, dirigidos por Diego Fasolis, e “Chi vive amante” [faixa 2], da ópera Alessandro nell’Indie (1730), de Leonardo Vinci, com Il Giardino Armonico, dirigido por Giovanni Antonini e que são “sobras” (mas sobras gourmet!) das sessões que geraram, respectivamente, os álbuns Mission e Sacrificium (ver abaixo).
As restantes faixas provêm de oito discos editados entre 1993 e 2017 e que em seguida se apresentam, seguindo a ordem cronológica de publicação (todas as interpretações são em instrumentos de época, salvo indicação em contrário).
[“Chi vive amante”, de Alessandro nell’Indie, de Vinci:]
O dueto “Stabat mater dolorosa” [faixa 5], do Stabat mater (1736) de Giovanni Battista Pergolesi, representa a pré-história da carreira barroca de Bartoli: o disco, lançado em 1993, conta com a soprano June Anderson e a Sinfonietta de Montreal (em instrumentos modernos), dirigida por Charles Dutoit. Apesar da excelência das solistas, é uma versão convencional e polida, que já foi, entretanto, suplantada por pelo menos uma dúzia de versões HIP.
A ária “Agitata da due venti”, da ópera Griselda (1735) [faixa 6], de Vivaldi, faz parte de Live in Italy, um álbum incongruente surgido em 1998, que emparelha seis faixas barrocas (de Caccini, Handel e Vivaldi), com os Sonatori de la Gioiosa Marca, e 17 peças para voz e piano (Jean-Yves Thibaudet), da autoria de Mozart, Rossini, Bellini, Donizetti, Berlioz e Giordani. Tal como o disco anterior, não faz parte dos “indispensáveis”.
[“Agitata da due venti”, de Griselda, de Vivaldi:]
As árias “Lascia ch’io pianga” [faixa 3] e “Bel piacere è godere fido amore” [faixa 17], de Rinaldo (1711), a primeira ópera que Handel estreou em Londres, provêm de uma excepcional gravação integral da obra realizada em 1999 pela Academy of Ancient Music e o maestro Christopher Hogwood e que permanece, mais de 20 anos depois, no topo das recomendações para esta ópera.
[“Lascia ch’io pianga”, de Rinaldo, de Handel:]
Em 2005 surgiu o álbum Opera proibita, com Les Musiciens du Louvre, dirigidos por Marc Minkowski, dedicado ao período áureo da oratória em Roma, que resultou de, nos primeiros anos do século XVIII, a Santa Sé ter proibido a apresentação de óperas na cidade, pelo que os compositores canalizaram o seu talento dramático para a composição de “histórias sacras” que, muitas vezes, só se distinguiam das óperas por não terem acção cénica. Deste CD foram seleccionadas as árias “Caldo sangue” [faixa 8], da oratória Sedecia, re di Gerusaleme (1705-6), de Alessandro Scarlatti, “Vanne pentita a piangere” [faixa 13], da oratória Il trionfo dell’Inocenza (1711), de Antonio Caldara, e “Disserratevi, o porte d’Averno” [faixa 14], da oratória La Resurrezione (1708), do então muito jovem Handel.
[“Caldo sangue” de Sedecia, re di Gerusaleme, de Alessandro Scarlatti]
Em 2009 surgiu mais uma colaboração entre Bartoli, Il Giardino Armonico e o maestro Giovanni Antonini: o álbum Sacrificium: La scuola dei castrati, tendo por tema os cantores que, em rapazinhos, eram castrados, de forma a manterem a voz aguda que fazia as delícias do público da época e para quem os compositores talharam árias de mirabolante virtuosismo durante os três primeiros quartéis do século XVIII (ver Divas e castrati: Estas estrelas pop têm 300 anos). Este é o disco mais representado na compilação, com quatro árias: “Son qual nave che agitata” [faixa 4], da ópera Artaserse (1734), de Riccardo Broschi (irmão do famoso castrato Carlo Broschi, conhecido como Farinelli), “Ombra mai fu” [faixa 9], da ópera Serse (1738), de Handel, “Ov’è il mio bene” [faixa 11], da ópera Adriano in Siria (1746), de Carl Heinrich Graun, e “Parto, ti lascio, o cara” [faixa 15], da ópera Germanico in Germania (1732), de Nicola Porpora.
[“Son qual nave che agitata”, de Artaserse, de Riccardo Broschi:]
Em 2012-13, Bartoli, I Barocchisti e o maestro Diego Fasolis lançaram uma trilogia dedicada a um dos mais negligenciados compositores barrocos, Agostino Steffani (1654-1728). Do 1.º tomo, intitulado Mission e dedicado à produção operática, foram seleccionados os duetos “Mia fiamma… mio ardore” [faixa 7], de Niobe, regina di Tebe (1688), e “Combatton quest’alma” [faixa 16], de I trionfi del fato (1695), ambos com o concurso do contratenor Philippe Jaroussky.
[“Combatton quest’alma”, de I trionfi del fato, de Steffani:]
O 3.º tomo, dedicado à música sacra (o 2.º tomo, Danze e Ouvertures, não conta com Bartoli), está representado com o trecho “Eia Mater, fons amoris” [faixa 12] do Stabat mater (1728), em que também intervém o (excepcional) contratenor Franco Fagioli.
Em 2017 surgiu Cecilia & Sol: Dolce duello, em que Bartoli tem como parceira a violoncelista Sol Gabetta e a Cappella Gabetta, dirigida por Andrés Gabetta (irmão de Sol), e do qual foi extraída a ária “Aure, andate e baciate” [faixa 10], da “festa pastorale” Il nascimento dell’aurora (c.1710), de Tomaso Albinoni, que será uma agradável surpresa para quem só conheça o compositor pelo Adagio em algodão-doce que leva o seu nome (e é, na verdade, uma contrafacção inepta criada por um musicólogo obscuro).
[“Aure, andate e baciate”, de Il nascimento dell’aurora, de Albinoni:]
Inexplicavelmente, a retrospectiva não inclui nenhuma faixa do pioneiro The Vivaldi Album, de 1999, nem da sua não menos brilhante sequela de 2018, desta feita com o Ensemble Matheus, dirigido por Jean-Christophe Spinosi (ver Vivaldi por Bartoli, 20 anos depois), nem do álbum Farinelli, de 2019, consagrado ao repertório do famoso castrato e contando, mais uma vez, com Il Giardino Armonico e Antonini. Na verdade, pouco importam estas omissões, porque o que há a fazer é ignorar esta compilação e obter todos os discos originais de Bartoli a cantar repertório barroco.