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“É um velho com uma prodigiosa fúria da composição. Ouvi-o gabar-se de ser capaz de compor um concerto, com todas as suas partes, em menos tempo do que um copista levaria a copiá-lo”. O testemunho é do erudito francês Charles de Brosses e diz respeito a Antonio Vivaldi, que conheceu quando visitou Veneza em 1739. Porém, de pouco serviu a Vivaldi a “prodigiosa fúria da composição”: a sua fama estava então já em declínio e quer o público comum quer os grandes senhores a quem dedicara obras e de quem recebera elogios e honrarias, deixavam-se seduzir por novas vogas musicais. Vivaldi morreria dois anos depois, em Viena, em situação financeira aflitiva, e a sua obra, que, poucos anos antes, circulara intensamente pela Europa (frequentemente em edições piratas), caiu rapidamente num olvido que cerca de dois séculos.

Retrato, realizado em 1723 por autor anónimo, de um músico que costuma ser identificado com Vivaldi

Do fundo do poço do esquecimento

O interesse por Vivaldi nunca morreu completamente entre os violinistas – compreende-se porquê, pois o compositor veneziano, que fora também um violinista excepcional, escrevera para o seu instrumento o inacreditável número de 214 concertos, que exploram uma vertiginosa diversidade de técnicas e atmosferas. Entre os violinistas que estavam conscientes do contributo de Vivaldi para a arte do violino estava Fritz Kreisler (1875-1962), que era também compositor e criou várias peças ao estilo de compositores barrocos e que apresentou sob os respectivos nomes, só vindo a revelar a sua real autoria em 1935. Entre eles está um Concerto para violino em dó maior (1927), que atribuiu a Vivaldi, que não soa a Vivaldi nem sequer tem um sabor barroco convincente e mostra que Kreisler era bem melhor violinista do que compositor.

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[O Concerto para violino em dó maior “ao estilo de Vivaldi”, de Kreisler em interpretação do próprio]

O musicólogo Marc Pincherle não precisara de ouvir o “Concerto de Vivaldi” de Kreisler para ficar fascinado pelo compositor veneziano: em 1913 iniciara uma tese de doutoramento sobre Vivaldi, que acabaria por conduzir à publicação, em 1948, da biografia Vivaldi: Génie du Baroque e à primeira inventariação das suas obras – o catálogo de Pincherle (referenciado pela letra P) viria depois a ser suplantado pelo catálogo publicado por Peter Ryom (referência RV) em 1973. Antes disso, entre 1926 e 1930, a Biblioteca Nazionale Universitaria, de Turim, lograra, graças à diligência do historiador Alberto Gentili e à generosidade do banqueiro Roberto Foà e do industrial Filippo Giordano, adquirir duas fabulosas colecções de manuscritos vivaldianos (450 composições repartidas por 27 volumes), uma na posse de um colégio salesiano do Piemonte e outra na posse dos descendentes do conde Durazzo (1717-1794), que fora supervisor da música na corte de Viena.

Caricatura de Vivaldi realizada por Pier Leone Ghezzi quando da apresentação de uma ópera do compositor (provavelmente Ercole su’l Termodonte) no Teatro Capranica, em Roma, em 1723

A Semana Vivaldi, promovida pelo compositor Alfredo Casella em 1939, foi o ponto de partida para a redescoberta do compositor, mas a II Guerra Mundial suspendeu o processo, que só seria retomado na viragem dos anos 40-50. Mas durante as primeiras décadas, Vivaldi chegou ao grande público quase exclusivamente através de As Quatro Estações e foi preciso esperar pelo movimento da “interpretação historicamente informada” para que começasse a ser patente a deslumbrante inventividade da sua restante produção de concertos.

Se no início da década de 1980 os principais agrupamentos de música antiga começavam a mostrar que Vivaldi era muito mais que “o autor de As Quatro Estações” (ver Vivaldi: A extravagância do príncipe de Veneza continua), a música sacra levou algum tempo mais a difundir-se, já que durante muito tempo só o Gloria RV 589 era regularmente programado e gravado – foi preciso que Robert King, à frente do King’s Consort, gravasse na íntegra as obras sacras de Vivaldi para a Hyperion – num total de 11 CDs, registados entre 1994 e 2003 – para que o meio musical se apercebesse que ele tinha sido também um notável compositor sacro.

[“Gloria in excelsis”, do Gloria RV 589 de Vivaldi, pelo Coro da Radiotelevisão Suíça e I Barocchisti, com direcção de Diego Fasolis, de um CD Decca que está entre os discos notáveis de 2018]

A ópera foi a derradeira área de actividade de Vivaldi a obter reconhecimento: a ópera Olimpiade tinha tido estreia moderna na Semana Vivaldi de 1939, mas no final do século XX a encenação de óperas de Vivaldi era esporádica (e raramente era feita em condições que fizessem justiça às obras) e a maioria delas permanecia inédita; se se percorressem as prateleiras das discotecas, pouco mais se encontraria do que o Orlando furioso de 1727 gravado por Claudio Scimone para a Erato, em 1977, com I Solisti Veneti e um elenco vocal encabeçado pelas formidáveis Marilyn Horne e Victoria de los Angeles, mas ainda pouco sintonizado com as práticas interpretativas historicistas.

[“Surge l’irato nembo”, de Orlando furioso (1727), por Marilyn Horne (mezzo-soprano) e I Solisti Veneti, com direcção de Claudio Scimone, na gravação realizada em 1977 para a Erato]

O ponto de viragem teve lugar em 1998. Cecilia Bartoli, que ascendera ao (merecido) estrelato com a ópera de Rossini e Mozart, fez sair The Vivaldi Album, com a colaboração de Il Giardino Armonico, na Decca.

The Vivaldi Album: o disco que mudou a percepção da ópera de Vivaldi

Esta colecção de árias de óperas de Vivaldi, a maior parte delas nunca gravadas antes, tornou-se num êxito inesperado, vendendo 700.000 exemplares e fazendo o meio musical se aperceber de que a ópera de Vivaldi não era menos variada e inventiva do que os seus concertos para violino e nada ficava a dever à ópera de Handel, Mozart ou Verdi. 1998 foi o ano da Revolução Vivaldiana, mas para a compreender é preciso recuar até 1678.

O padre ruivo

Antonio Lucio Vivaldi era conhecido em Veneza como “il prete rosso”, pois foi ordenado padre e herdara do pai uma cabeleira ruiva. A herança paterna não se resumia ao cabelo: Giovanni Battista Vivaldi (c.1655-1736) tinha origem humilde e quando o seu primeiro filho, Antonio, nasceu, em 1678, ainda tinha de conciliar a actividade musical com a ocupação de barbeiro, mas no final do século XVIII era reconhecido como estando entre os melhores violinistas de Veneza, fazia parte da reputada orquestra da basílica de São Marcos e tinha sido co-fundador da Sovvegno dei Musicisti di Santa Cecilia, uma associação mutualista dos músicos de Veneza; foi provavelmente ele quem ensinou violino e composição ao jovem Antonio.

A igreja em que Antonio Lucio Vivaldi foi baptizado: San Giovanni in Bragora, Veneza

Às funções de Giovanni Battista na orquestra de São Marcos, iniciadas em 1685, somou-se, entre 1689 e 1693, a de “maestro di strumenti” no Ospedale dei Mendicanti. Os ospedali venezianos tinham começado por ser instituições de caridade, mas foram convertendo-se num misto de orfanato, convento e conservatório, em que as raparigas órfãs ou abandonadas em bebés pela família e ainda algumas filhas da aristocracia eram educadas segundo preceitos religiosos estritos e recebiam esmerada educação musical.

O Gran Canale visto do Palazzo Flangini na direcção de Campo San Marcuola, por Antonio Canal dito Canaletto, 1738

Giovanni Battista Vivaldi não limitava as suas actuações a Veneza e fazia frequentes tournées pelo norte de Itália, nas quais se fazia acompanhar pelo promissor Antonio. Como acontecia com muitos filhos mais velhos, Antonio foi destinado à carreira eclesiástica – que, na Veneza da época, era perfeitamente compatível com a profissão de músico – e em 1693, aos 15 anos, recebeu a tonsura e iniciou a educação religiosa.

A primeira actuação pública de Antonio Vivaldi de que se tem notícia teve lugar no Natal de 1696, como violinista supranumerário na orquestra de São Marcos, mas há indícios que a sua actividade como compositor começara antes, com um Laetatus sum (RV Anh.31) composto em 1691, aos 13 anos.

Em 1703, aos 25 anos, Vivaldi foi ordenado padre e nomeado maestro di violino no Ospedale della Pietà, cargo que envolvia o ensino do violino às figlie del coro (assim eram designadas as internas que se consagravam à música) e a composição de música instrumental.

A Chiesa della Pietà, junto à qual funcionava o Ospedale onde Vivaldi trabalhou durante décadas

Adicionalmente, Vivaldi teve também o cargo de mansionario, isto é, de “padre residente” do Ospedale, mas em 1706 deixou de exercê-lo; já em 1704 conseguira obter dispensa de dizer a missa, alegando problemas respiratórios (“stretezza di petto”). Apesar de se tratar de um “contrato a termo”, sujeito a renovação anual pelo conselho de administração do Ospedale, o vínculo manter-se-ia, com intermitências, durante os 37 anos seguintes.

Na verdade até viria a intensificar-se quando, em 1713, Francesco Gasparini, que desempenhava funções de maestro di coro (o responsável pela música coral) no Ospedale della Pietà, obteve uma licença sem vencimento e Vivaldi acabou por acumular interinamente as suas funções até que, em 1719, sendo óbvio que Gasparini não iria regressar, foi nomeado um novo maestro di coro. Foi durante este interregno que Vivaldi produziu o grosso da sua obra sacra.

[I andamento (Preludio – Largo) da Sonata em trio op. 1 n.º 8, pelo ensemble L’Estravagante (Naïve/Opus 111)]

Vivaldi estreara-se a publicar música instrumental logo em 1705, com as Sonatas em Trio op.1, mas seriam os 12 Concertos op.3 L’estro armonico, publicados em Amesterdão em 1711 que lhe granjeariam fama à escala europeia – alguns deles chegaram ao conhecimento de Johann Sebastian Bach, que os achou suficientemente inovadores e estimulantes para transcrever seis deles: três concertos para violino solo e um para quatro violinos foram convertidos em concertos para cravo solo e para quatro cravos e dois concertos para dois violinos foram transcritos para órgão solo.

[Concerto para quatro violinos RV 580, o n.º 10 da colecção L’estro armonico, por Il Giardino Armonico, com direcção de Giovanni Antonini]

O crescente renome de Vivaldi levou a que em 1716 o Ospedale della Pietà lhe outorgasse o cargo de maestro de’ concerti – o responsável pela música instrumental na instituição – título que Vivaldi usava, informalmente já há alguns anos.

Vivaldi, compositor e empresário de ópera

A 30 de Abril de 1713, Vivaldi estreou a sua primeira ópera, Ottone in villa, no Teatro di Piazza, em Vicenza. A escolha deste palco “periférico” pode parecer estranha, dado que Veneza era então um dos principais centros operáticos da Europa, mas talvez Vivaldi tenha temido que uma estreia mal-sucedida em Veneza seria demasiado estrepitosa e lhe arruinaria a carreira, enquanto um fiasco em Vicenza passaria despercebido.

[“Gelosia, tu già rendi l’alma mia”, de Ottone in villa (1713), por Lea Desandre (mezzo-soprano) e Les Arts Florissants, com direcção de William Christie]

Ottone in villa foi bem recebida e, encorajado, Vivaldi redireccionou boa parte da sua energia e inspiração para a ópera, assumindo, em conjunto com o pai, a gestão do Teatro Sant’Angelo, em Veneza, onde em 1714 estreou Orlando furioso e Orlando finto pazzo. Tal como Handel, que por esta altura se estabelecera em Londres como compositor de ópera (ver Handel sabia: Os heróis por vezes são vilões e Arminio: O mau destino da ópera esquecida de Handel), Vivaldi gostava de ter controlo de todo o processo criativo da ópera, pelo que acumulava com a composição, as funções de empresário (cabendo-lhe, nomeadamente a selecção e contratação dos cantores e a gestão dos seus egos e caprichos) e de maestro (cabendo-lhe não só dirigir as récitas como os ensaios).

[“Nel profondo cieco mondo”, de Orlando furioso (1714), por Riccardo Novaro (barítono) e Modo Antiquo, com direcção de Federico Maria Sardelli (Naïve/Opus 111)]

Porém, ao contrário de Handel, cuja companhia de ópera contava com o apoio da realeza britânica e dispunha de margem de manobra financeira para contratar os castrati mais famosos, Vivaldi tinha de fazer uma gestão mais cautelosa e contentar-se com cantores competentes mas sem exigências de cachet exorbitantes, pelo que os heróis das suas óperas foram quase sempre cantados por mulheres (o travestismo era usual nos palcos do Barroco) e não por castrati (ver Divas e castrati: Estas estrelas pop têm 300 anos).

[“Anderò, volerò, griderò”, de Orlando finto pazzo (1714), por Cecilia Bartoli e Il Giardino Armonico, com direcção de Giovanni Antonini, durante uma sessão de gravação de The Vivaldi Album (Decca)]

Vivaldi foi providenciando óperas para o Teatro Sant’Angelo num ritmo vertiginoso – sobretudo se considerarmos que mantinha as suas atribuições no Ospedale della Pietà e continuava a compor quantidades copiosas de música instrumental – algumas de sua inteira autoria, outras pasticcios envolvendo vários compositores (uma prática corrente na época). Seguindo o gosto e uso daquele tempo, a maior parte dos enredos das óperas envolviam figuras e episódios da Antiguidade Clássica – Ottone in villa (1713), Nerone fatto Cesare (1715), Arsilda, regina di Ponto (1716), L’incoronazione di Dario (1717), Artabano, re dei Parti (1718), Tito Manlio (1719), Filippo, re di Macedonia (1720), Farnace (1727), Siroe, re di Persia (1727), Semiramide (1731), Catone in Utica (1737) – ou episódios da mitologia greco-romana – Ercole sul’l Termodonte (1723), La fida ninfa (1732).

[“Dopo un’orrida procella”, de Dorilla in Tempe (1726), por Cecilia Bartoli e Il Giardino Armonico, com direcção de Giovanni Antonini, de The Vivaldi Album (Decca)]

Outras faziam referência a eventos históricos posteriores à queda do Império Romano – Scanderberg (1718), Giustino (1724), Il Tamerlano ou Il Bajazet (1735) – ou remetiam para os romances de cavalaria – Orlando furioso (1714), Orlando finto pazzo (1714), Armida al campo d’Egitto (1718). Uma proporção elevada dos libretos situam-se no ambiente exótico das cortes do Médio Oriente, quer na Antiguidade Clássica quer sob o domínio islâmico e dois deles têm mesmo lugar em paragens bem remotas: Argippo (1730), que decorre numa corte da Índia, e Motezuma (1733), que narra os confrontos entre aztecas e espanhóis.

[“S’impugni la spada”, de Motezuma (1733), por Mary-Ellen Nesi (mezzo-soprano) e Il Complesso Barocco, com direcção de Alan Curtis, ao vivo no Teatro di Ferrara, 2008]

Seja qual for a época e a geografia, os enredos acabam por ter importantes afinidades: as personagens principais são reis, príncipes e princesas, atormentados por questões dinásticas e por paixões amorosas desencontradas, que após peripécias várias, são subitamente alinhadas nos últimos instantes, permitindo o final feliz requerido pelas convenções da época. Vivaldi limitou-se a recorrer aos libretos em circulação na época, alguns dos quais já tinham sido musicados por outros compositores, e injectou-lhes a sua verve e o seu colorido instrumental.

[“Sento in seno”, de Giustino (1724), por Philippe Jaroussky (contratenor) e Ensemble Matheus, dirigido pelo violinista Jean-Christophe Spinosi, ao vivo na Chapelle de la Trinité, Lyon, 2006]

A qualidade das suas óperas fez com que a sua fama extravasasse as fronteiras da República de Veneza e Vivaldi começou a atender encomendas de Florença, Mântua, Roma, Milão, Reggio Emilia e Verona. A relação com Mântua não se limitou a uma encomenda: entre 1718 e 1720 Vivaldi desempenhou funções de responsável pela música não-religiosa na corte do príncipe Filipe de Hesse-Darmstadt, que governava o ducado em nome do imperador Habsburgo, mas após apresentar três óperas, regressou a Veneza e à gestão do Teatro Sant’Angelo.

[“Siam navi all’onde algenti”, de L’Olimpiade (1734), por Cecilia Bartoli e Il Giardino Armonico, com direcção de Giovanni Antonini, ao vivo no Théâtre des Champs-Elysées, Paris, concerto documentado no DVD Viva Vivaldi! (Decca)]

Vivaldi tinha boas relações com alguns melómanos da Boémia – nomeadamente com o conde Morzin –, pelo que não é de estranhar que Praga assistisse à estreia de três óperas suas – La tirannia castigata, de 1726, Argippo, de 1730, Alvilda, regina de’ Goti, de 1731, e Doriclea, de 1732 – e à reposição de outras – nomeadamente Farnace, em 1730. É muito provável que este “surto” vivaldiano em Praga tenha contado com a presença do próprio compositor, pois sabe-se que no final de 1729 Vivaldi e o seu pai deixaram Veneza para uma viagem pela Europa Central, da qual regressariam apenas em Maio de 1731.

[“Gelido in ogni vena”, de Farnace (estreada em 1727 em Veneza e reposta em Praga em 1730), por Cecilia Bartoli e Il Giardino Armonico, com direcção de Giovanni Antonini, ao vivo no Théâtre des Champs-Elysées, Paris, concerto documentado no DVD Viva Vivaldi! (Decca)]

Apogeu e declínio

A década de 1720 marcou o apogeu da carreira de Vivaldi. Se fosse necessário provar a estima de que Vivaldi gozava entre as elites cultas da Europa, basta ver os dedicatários das colecções de concertos que publicou, o op.3 L’estro armonico (1711) foi dedicado a Fernando III da Toscânia, o op.8 Il cimento dell’armonia e de l’inventione (1725), ao conde Václav Morzin, um conselheiro da corte imperial de Viena, o op.9 La cetra (1727), ao próprio imperador Carlos VI

O conde Václav (ou Wenzel ou Wenceslaus) Morzin (1675-1737), por Jan Petr Molitor, 1736

Outra prova da popularidade de Vivaldi foi a proliferação de edições piratas e até de imposturas – em 1737, o editor francês Jean-Noël Marchand publicou um op.13 atribuído a Vivaldi que era, na realidade, obra de Nicolas Chédeville (1705-1782).

A fama de Vivaldi valeu-lhe duas encomendas pela parte do embaixador francês em Veneza: a serenata Gloria e Imeneo (1725), destinada a celebrar o casamento de Luís XV, e La Senna festeggiante (1726), celebrando o nascimento das duas primeiras filhas de Luís XV.

[Excerto de La Senna festeggiante (1726), por Karina Gauvin (soprano), Sonia Prina (contralto), Ugo Guagliardo (baixo) e B’Rock Orchestra, com direcção de Christopher Bucknall, ao vivo no Arsenal de Metz]

Mas no início da década de 1730 a estrela de Vivaldi começou a empalidecer, talvez em resultado da crescente voga da ópera napolitana, ou quiçá porque a frenética actividade de Vivaldi como compositor, maestro e empresário começava a cobrar a sua factura. Assim, uma parte das óperas desta época recorrem à reciclagem de material de óperas anteriores (ou à sua reposição sob forma revista e com um novo título) ou são pasticcios com apenas algumas árias de Vivaldi e incorporando árias dos compositores napolitanos da moda.

[“Agitata da due venti”, de Griselda (1735), por Cecilia Bartoli e os Sonatori de la Gioiosa Marca, num concerto ao vivo]

Em 1733, Frederico Augusto I da Saxónia faleceu e foi sucedido por Frederico Augusto II, que Vivaldi conhecera em 1716-17, quando o jovem príncipe passara uma temporada em Veneza, acompanhado pelos músicos da corte de Dresden – nomeadamente o violinista Johann Georg Pisendel, ao qual Vivaldi deu lições de violino e com quem manteve contacto após o regresso a Dresden, onde Pisendel ascendeu, em 1728, ao posto de Konzertmeister. É provável que, com o envio para Dresden, em 1733, de uma generosa amostra das suas composições, Vivaldi estivesse a tentar obter um posto na opulenta orquestra da corte de Dresden – um lugar que Bach também ambicionou.

[Concerto para violino RV 242, “fatto per Maestro Pisendel”, por Enrico Onofri (violino) e Il Giardino Armonico, com direcção de Giovanni Antonini, num concerto ao vivo, 2000]

Porém, a “candidatura” não produziu efeito e em 1736 Vivaldi sofreu um rude golpe com a morte do seu pai, que tinha tido apoiado incansavelmente toda a sua actividade no ramo da ópera, actuando como “maestro assistente”. O falecimento de Giovanni Battista poderá ter sido determinante no cancelamento da temporada de Vivaldi no Teatro Pubblico de Lucca, em 1736, mas o compositor acabou por prosseguir com a sua carreira operática. Esta conheceria um sério contratempo na temporada de 1738-39 em Ferrara: a reposição de Siroe foi um fiasco (que Vivaldi atribuiu à sabotagem de um músico de Ferrara) e a administração do teatro recusou levar à cena Farnace e substituiu-a por uma ópera de outro compositor. Em 1738, estreou no Teatro Sant’Angelo, a sua penúltima ópera, Rosmira fedele, na verdade um pasticcio em que apenas algumas árias são da sua autoria, e no ano seguinte surgiu, no mesmo teatro, a sua derradeira ópera, Feraspe, da qual nenhuma música sobreviveu.

[“Vorrei dirti il mio dolore”, ária de Vivaldi no pasticcio Rosmira fedele (1738), por Vivica Genaux (mezzo-soprano) e Europa Galante, com direcção de Fabio Biondi, do álbum Pyrotechnics (Virgin Classics/Erato)]

Em 1740 Vivaldi parecia ter planos para se instalar em Viena e vendeu um apreciável número de partituras ao Ospedale della Pietà, com o duplo intuito de providenciar a instituição com música durante a sua ausência e obter dinheiro para a viagem.

Nunca saberemos ao certo o que pretendia Vivaldi com a mudança para Viena, mas, atendendo, a que a orquestra da corte do imperador Carlos VI estava bem provida de músicos de valor, é provável que pretendesse singrar na ópera – se assim era, os seus planos desmoronaram-se quando Carlos VI faleceu em Outubro de 1740 e foi decretado, como era usual, o encerramento de toda a actividade teatral durante um ano. Perante a indiferença e inacessibilidade dos nobres da corte imperial que o poderiam ajudar, Vivaldi foi mergulhando na pobreza e no desespero – em Junho de 1741 viu-se forçado a vender, por quantia irrisória, uma enorme quantidade de manuscritos ao conde Tommaso Vinciguerra di Collalto. Um mês depois sucumbia a uma “gangrena pulmonar”. Tinha 63 anos.

“A apoteose de Carlos VI”, fresco de Paul Troger no tecto da Escadaria do Imperador, na Abadia de Göttweig, 1739

O renascimento de Vivaldi desde 1998

Vivaldi vangloriava-se de ter composto 94 óperas, mas o que chegou ao nosso tempo é substancialmente menos: uma vintena de óperas completas ou com lacunas passíveis de reconstrução, quatro óperas muito incompletas e árias soltas de muitas outras. De algumas não sobrou nem um compasso, embora esteja provada a sua existência, o que faz o cômputo total de óperas ascender à meia centena. A ser verdadeira, a contabilidade de Vivaldi incluirá provavelmente os pasticcios (em que parte do material é de outros compositores) e as óperas repostas em versão revista e com novo título, bem como óperas cuja existência se desconhece. A verdade é que, após anos de investigação, continua a vir à superfície material inédito: por exemplo, só na presente década os musicólogos perceberam que além do Orlando furioso estreado em 1727, Vivaldi tinha apresentado em 1714 no Teatro Sant’Angelo de Veneza uma ópera com o mesmo título e um libreto similar, mas com música completamente diversa, reaproveitando algum material da ópera composta por Alberto Ristori sobre o mesmo libreto e que fora apresentada em 1713 no mesmo teatro, sob a direcção de Vivaldi.

[“Non muore fiore”, de Orlando furioso (1714), por David DQ Lee (contratenor) e Modo Antiquo, com direcção de Federico Maria Sardelli (Naïve/Opus 111)]

A investigação musicológica, a encenação e o registo da ópera de Vivaldi estava num estado incipiente quando da saída de The Vivaldi Album de Cecilia Bartoli & Il Giardino Armonico, mas o sucesso deste disco mudou tudo. Por um lado a Opus 111/Naïve lançou-se na Vivaldi Edition, um audacioso projecto de gravar toda a música de Vivaldi que existe na Biblioteca Nazionale Universitaria de Turim (450 composições!), o que implicou um aturado trabalho de pesquisa musicológica e a laboriosa reconstrução das muitas lacunas exibidas por algumas óperas.

[Excerto de Armida al campo d’Egitto (1718), por Sara Mingardo (contralto) e o Concerto Italiano, com direcção de Rinaldo Alessandrini, durante a gravação do 8.º volume das óperas da Vivaldi Edition para a Opus 111/Naïve]

As partituras foram confiadas a elencos vocais escolhidos a dedo e a orquestras de instrumentos de época com particular vocação vivaldiana: o Ensemble Matheus, de Jean-Christophe Spinosi, o Modo Antiquo, de Federico Maria Sardelli, o Concerto Italiano, de Rinaldo Alessandrini, a Academia Montis Regalis, de Alessandro de Marchi, Il Complesso Barocco, de Alan Curtis, Il Giardino Armonico, de Giovanni Antonini, e a Accademia Bizantina, de Ottavio Dantone. Somando à Vivaldi Edition as gravações realizadas para a Virgin Classics (hoje Erato) e para a Archiv, pelos agrupamentos Europa Galante, de Fabio Biondi, Il Complesso Barocco, de Alan Curtis, I Barocchisti, de Diego Fasolis, e Orquestra Barroca de Veneza, de Andrea Marcon, pode hoje dizer-se que todas as óperas de Vivaldi susceptíveis de serem apresentadas na íntegra estão disponíveis em gravações de primeira qualidade, do ponto de vista musicológico, interpretativo e de qualidade sonora – algo que, em 1998, nem o fã de Vivaldi mais optimista seria capaz de prever.

[“Son qual nave”, da L’oracolo in Messenia (1737), por Julia Lezhneva (soprano) e Europa Galante, com direcção de Fabio Biondi (Virgin Classics/Erato)]

Para lá das óperas completas, alguns dos mais notáveis cantores do nosso tempo seguiram o exemplo de Bartoli e fizeram sair vários discos com colecções de árias de ópera avulsas, de que merecem destaque os de Topi Lehtipuu com I Barocchisti, de Sandrine Piau, Ann Hallenberg, Guillemette Laurens e Paul Agnew com o Modo Antiquo, de Sonia Prina com a Accademia Bizantina, e de Lorenzo Regazzo com o Concerto Italiano (todos na Naïve/Opus 111), de Vivica Genaux com a Europa Galante e de Philippe Jaroussky com o Ensemble Matheus (ambos Virgin Classics/Erato), de Simone Kermes com a Orquestra Barroca de Veneza e de Magdalena Kožená com a mesma orquestra (ambos Archiv), de Roberta Invernizzi com La Risonanza (Glossa) e de Nathalie Stutzman com o Orfeo 55 (Deutsche Grammophon).

[“Dite, oime! Ditelo, al fine!”, de La fida ninfa (1732), por Roberta Invernizzi e La Risonanza, com direcção de Fabio Bonizzoni, do álbum Opera arias (Glossa)]

O regresso de Bartoli a Vivaldi

Pelo seu lado, Cecilia Bartoli tomou gosto em revelar ao mundo compositores e obras esquecidas dos períodos barroco e clássico e lançou-se numa série de discos de moldes e intenções similares às de The Vivaldi album, todos eles assentes em colaborações com musicólogos e com os melhores grupos de instrumentos de época – apesar de recheados de estreias em disco de composições que não eram ouvidas há séculos e do elevado nível artístico, não atingiram o impacto mediático e o sucesso comercial do primeiro, embora tenham obtido, em geral, críticas entusiásticas.

Cecilia Bartoli

Esta sucessão de gravações compreende The Salieri album (2003), com árias de óperas de Antonio Salieri, o “rival de Mozart”, Opera proibita (2005), sobre a oratória em Roma na primeira década do século XVIII, quando uma interdição papal determinou o fecho dos teatros de ópera, Sacrificium (2009), com o repertório virtuosístico concebido expressamente para os castrati que dominaram os palcos barrocos, Mission (2012), revelando as injustamente esquecidas óperas de Agostino Steffani, St. Petersburg (2014), focado na ópera composta para a corte de São Petersburgo na segunda metade do século XVIII, e Dolce duello (2017), em parceria com a violoncelista Sol Gabetta, que coloca ênfase em árias barrocas em que a voz partilha o protagonismo com o violoncelo.

O disco de Cecilia Bartoli com o Ensemble Matheus e Jean-Christophe Spinosi

Para o regresso à ópera de Vivaldi, associou-se ao Ensemble Matheus, dirigido pelo violinista Jean-Christophe Spinosi, um agrupamento de instrumentos de época cuja aclamada discografia, pautada por interpretações arrebatadas, tem Vivaldi como compositor central (quase exclusivo, na verdade).

Antes de se passar à música, há dois reparos a fazer ao livrete, que não lista os músicos do Ensemble Matheus (só os solistas são referidos) e que não fornece qualquer enquadramento das árias seleccionadas no enredo das óperas, nem das óperas no contexto da produção de Vivaldi. Não é por falta de espaço, dado que muitas páginas são consumidas a reproduzir, em bom papel e numa paginação muito arejada, elogios a Cecilia Bartoli – são merecidos, sem dúvida, mas é de lamentar esta voga dos departamentos de marketing das editoras de fazer acompanhar cada disco com uma apreciação encomiástica pré-fabricada, numa tentativa de formatar a recepção ao disco.

O CD está estruturado de forma a colocar em relevo o vasto espectro emocional coberto pelas árias de Vivaldi: abre com “Se lento ancora il fulmine”, de Argippo (1730), uma ária de violento contraste emocional, com uma parte A vertiginosa, em que Zanaida expressa a fúria contra o esposo que a traiu (“Se o relâmpago tarda/ Em vingar o meu ultraje/ Cairá o ímpio/ Vítima da minha justa ira”), e uma parte B em que exprime remorso pelo seu destempero e suplica “Regressa e perdoar-te-ei”. Segue-se a doce “Sol da te, mio dolce amore”, de Orlando furioso (1727), em que voz e flauta solista se enleiam como dois amantes.

[“Sol da te, mio dolce amore”, por Cecilia Bartoli e o Ensemble Matheus, com direcção de Jean-Christophe Spinosi]

“Vedrò con mio diletto” é um dos momentos mais pungentes de Giustino (1724) e de toda a ópera e Bartoli mostra como a sua prodigiosa técnica convive com uma sensibilidade e uma expressividade apuradíssimas.

[“Vedrò con mio diletto”, por Cecilia Bartoli e o Ensemble Matheus, com direcção de Jean-Christophe Spinosi]

Bartoli exibe a sua inacreditável agilidade vocal na concisa e assertiva “Ah fuggi rapido”, de Orlando furioso (1714), em que Astolfo intima Ruggiero a escapar do reino urdido pelos feitiços de Alcina: “A chama sombria/ Que abrasa o teu peito/ É a do Inferno/ Não a do amor”.

[“Ah fuggi rapido”, por Cecilia Bartoli e o Ensemble Matheus, com direcção de Jean-Christophe Spinosi]

Em “Quel augelin que canta”, de La Silvia (1721), apresenta-se o Vivaldi primaveril e bucólico que é mais conhecido do grande público, com os floreados da voz e do violino solista a evocar o canto das aves. A sua atmosfera distendida contrasta com o tocante lamento que é “Leggi almeno, tiranna infedele”, de Ottone in villa (1713).

[“Leggi almeno, tiranna infedele”, por Cecilia Bartoli e o Ensemble Matheus, com direcção de Jean-Christophe Spinosi]

A serenata Andromeda liberata (1726), destinada a dar as boas-vindas a Veneza do cardeal Pietro Ottoboni, é possivelmente um pasticcio em que há mão de mais quatro compositores além de Vivaldi. A ária de Perseo “Sovente il sole” é seguramente da autoria do “prete rosso” e inclui um solo de violino que foi executado pelo próprio Vivaldi quando da estreia (naquela que é a última apresentação pública de Vivaldi como solista de que há registo). É uma ária de uma beleza serena mas ensombrada pela premonição de eventos funestos e que nos diz que o sol é mais belo e brilhante antes de ser toldado por uma nuvem negra e que o mar fica quase liso antes de ser agitado por uma feroz tempestade.

[“Sovente il sole”, por Cecilia Bartoli e o Ensemble Matheus, com direcção de Jean-Christophe Spinosi]

“Combatta un gentil cor”, de Tito Manlio (1719), é uma ária marcial e desafiadora, em que voz e trompete solista competem em virtuosismo e Lucio proclama que “Jamais um valente/ Dará prova de cobardia/ E recusará enfrentar/ O adversário de igual para igual”. O brilho desta ária contrasta com a doçura de “Se mai senti spirarti sul volto”, de Catone in Utica (1737), uma ária em que o Ensemble Matheus, que ganhou reputação pelos vendavais sonoros que gera, se converte numa brisa suavíssima.

Esta nova incursão na ópera de Vivaldi por Bartoli não pode causar em 2018 a surpresa que The Vivaldi album suscitou em 1998, mas não é menos conseguida do ponto de vista artístico.

[“Se mai senti spirarti sul volto”, por Cecilia Bartoli e o Ensemble Matheus, com direcção de Jean-Christophe Spinosi]