Os profissionais da cultura, na maioria impedidos de trabalhar desde 15 de janeiro devido ao confinamento geral, só partir do fim de março vão ter acesso à maior parcela dos apoios do Governo, ou seja, quase dois meses e meio depois de esses mesmos apoios terem sido anunciados como “resposta à pandemia” pela ministra Graça Fonseca. É esta uma das conclusões que se extraem da portaria publicada esta segunda-feira de manhã em Diário da República, através da qual o Ministério da Cultura regulamenta as “medidas de apoio à cultura no contexto de resposta à pandemia da doença covid-19”.
A portaria concretiza regras e valores que ao longo das últimas semanas já tinham sido parcelarmente divulgados pelo Ministério da Cultura. Uma das novidades é a inclusão na portaria de uma referência explícita ao montante financeiro para aquisição pelo Estado de obras de arte contemporânea em 2021. O diploma indica 650 mil euros, o que já era sabido desde julho do ano passado.
No entanto, no que respeita aos 42 milhões de euros do programa Garantir Cultura, que será gerido pelo Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais (GEPAC) e constitui a maior verba de quantas estão previstas, o artigo 3.º da portaria estabelece claramente que tais ajudas para empresas e para pessoas singulares e coletivas terão ainda de ser regulamentadas, respetivamente, “através de portaria dos membros do Governo competentes” e de “aviso do membro do Governo responsável pela área da cultura”, mas sem indicar quando.
O Observador perguntou, ao início da tarde, ao Ministério da Cultura quando serão publicadas as regras para o Garantir Cultura e obteve a indicação de que a resposta seria enviada ainda esta segunda-feira, o que não tinha acontecido até à hora de publicação. Antes disso, o gabinete da ministra emitiu um comunicado com um resumo da portaria agora publicada, no qual surgia a informação de que “todas as medidas constantes do Garantir Cultura estarão operacionalizadas até ao final do mês de março”.
Fins de março como prazo para o início das candidaturas ao Garantir Cultura já tinha sido anunciado por Graça Fonseca na maratona de reuniões que manteve a 3 de fevereiro com várias estruturas representativas dos profissionais do setor. Mas o prazo não consta da regulamentação publicada em Diário da Republica. A 2 de fevereiro, durante uma audição promovida pela Assembleia da República, a ministra disse que a regulamentação de todos os apoios aconteceria até 12 de fevereiro. “Será certamente na próxima semana publicada a regulamentação final destas diferentes medidas”, afirmou Graça Fonseca, depois de enumerar os apoios disponíveis: “Garantir Cultura, apoio de um IAS [438 euros] e diferentes outras medidas”.
Questionado sobre este aspeto, Rui Galveias, dirigente do Cena-STE (Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual e dos Músicos), confirmou que a ministra da Cultura tinha garantido em reunião de 3 de fevereiro que “em princípio só em março é que teriam a regulamentação do Garantir Cultura para depois se iniciar o processo de candidaturas”, pelo que não se surpreendeu com o facto de a portaria remeter para posterior regulamentação.
“Ainda assim, estamos preocupados, porque uma das nossas exigências, aliás apresentadas no protesto virtual pela cultura a 30 de janeiro, dizia respeito à rapidez. O Governo teve tempo para se preparar para esta situação. Estamos em Estado de Emergência desde novembro e muitas destas medidas até foram planeadas em Orçamento do Estado. Perante a evidência de que o confinamento iria ser a regra, e de que a maior parte da atividade cultural seria suspensa, não havia nenhuma razão para o Governo não se ter antecipado”, comentou Rui Galveias.
A Plateia – Associação de Profissionais das Artes Cénicas, que representa profissionais e estruturas maioritariamente do norte de Portugal, emitiu um comunicado onde considerou “lamentável” e “intolerável” que os apoios sociais “apenas [vão] chegar aos bolsos de quem precisa em março, na melhor das hipóteses”. Sobre o Garantir Cultura, aquela associação sublinhou “não existir qualquer previsão para a data em que chegará ao setor” e disse continuar “à espera de conhecer vários dos seus aspetos fundamentais, como as regras de acesso e atribuição ou o período temporal a que o apoio se vai referir”.
Sindicato quer “voltar à rua logo que faça sentido”
Quanto ao “apoio extraordinário aos artistas, autores, técnicos e outros profissionais da cultura”, no valor único de 438,81 euros por pessoa — com formulários eletrónicos disponíveis a partir da próxima quinta-feira em www.culturaportugal.gov.pt, de acordo com informação prestada pelo Ministério da Cultura —, a Plateia entende que vai excluir “todas as pessoas que à data de 1 de janeiro de 2020 tinham um contrato de trabalho, ainda que de curta duração ou part-time“, o que é “inaceitável”.
“É urgente que o Governo esclareça se os membros dos órgãos estatutários serão também excluídos do apoio, o que seria trágico”, referiu a Plateia no comunicado. “É incompreensível que depois de ter sido anunciado que este apoio era acumulável com todos os outros, se saiba agora que apenas será acumulável com o Apoio Extraordinário à Redução de Atividade, não sendo acumulável, pela leitura que fazemos, com o Apoio Excecional à Família, com a Medida Extraordinária de Incentivo à Atividade Profissional, com o Apoio à Desproteção Social e com o Apoio Extraordinário ao Rendimento dos Trabalhadores”.
A associação entende que perante a duração do confinamento, e sendo certo que os 438 euros foram anunciados a 14 de janeiro, “quando ainda não se previa a paragem do setor nos meses de fevereiro e março”, deveria haver “um compromisso para a repetição deste apoio, com referência aos meses de fevereiro e de março”.
Num comentário mais abrangente sobre a portaria, Rui Galveias notou que “ainda falta ver como vão funcionar os formulários e como é que eles vão chegar às pessoas”, resumindo em quatro pontos as preocupações do Cena-STE: “rapidez, aumento dos valores, extensão dos apoios no tempo e não deixar ninguém de fora”.
“Há medidas que temos de valorizar, como os apoios a todas as estruturas consideradas elegíveis pela DGArtes em 2020, mas os valores em cima da mesa deveriam ser mais altos. No caso do subsídio único de 438 euros, valorizamos o automatismo do apoio, mas achamos que ele deveria ter como referência o salário mínimo nacional”, concretizou o sindicalista. “E há ainda o problema de um conjunto de trabalhadores que são prestadores de serviços na área da cultura e que não têm os códigos de atividade previstos.”
Segundo Rui Galveias, o Cena-STE “está a trabalhar em várias frentes”, incluindo a “negociação de Acordos de Empresa em várias estruturas públicas e fundações” e “a conversar com os trabalhadores de forma direta sobre o que está em causa no Estatuto do Trabalhador da Cultura” (uma negociação com o Ministério da Cultura que começou no ano passado). Ao mesmo tempo, o sindicato mantém em aberto a possibilidade de “voltar à rua logo que faça sentido”, porque “as razões para isso mantêm-se”, disse.