– Ricky, viste? O “La La Land” ganhou o Óscar. Quem sabe, se calhar merece mesmo.
– Não sei, Asto. Mas assim que sair em Itália temos de ir ver. E julgamo-lo sem misericórdia, como sempre.
– Ok, Ricky. Vamos ver se merecia mesmo o Óscar.
Esta foi uma das últimas conversas entre Davide Astori e Riccardo Saponara. A 4 de março de 2018, há precisamente três anos, Astori foi encontrado morto no quarto enquanto estava num estágio com a Fiorentina. Tinha sofrido uma paragem cardiorrespiratória. Aos 31 anos, desaparecia o capitão da Fiorentina, um internacional italiano, um dos jogadores mais respeitados da Serie A e um autêntico irmão mais velho para os colegas de equipa mais novos. Um deles era Riccardo Saponara. Atualmente no Spezia, a cumprir o quarto empréstimo consecutivo depois de passar pela Sampdoria, pelo Génova e pelo Lecce, decidiu escrever uma carta a Astori. Publicada integralmente no Gazetta dello Sport esta quinta-feira, no terceiro aniversário da morte de Astori, a carta recorda o capitão íntegro, o colega atento e o homem multifacetado cujo desaparecimento chocou a Serie A e o futebol europeu.
“Quando penso que a vida pode parar de repente, deixar-te sem fôlego e partir sem pedir permissão, penso nesta conversa sobre o ‘La La Land’. O Davide era designer de interiores, era um expert em cinema de nicho, era um cozinheiro, era um apaixonado por séries de televisão, era completo. Não existia nada que ele não soubesse. Um louco por futebol, mas do meu tipo favorito. Como ele sempre disse, sentia que era um designer que se tornou jogador de futebol nos tempos livres. Quando penso que a vida nos deixa sem possibilidade de compensar o tempo perdido, penso no ‘La La Land’. O filme que devia ter visto com o Asto. O filme que vi sozinho. Com uma sensação de desespero, de privação. Voltei a vê-lo muitas vezes ao longo dos anos. Tem um significado especial para mim. Por aquele amigo a quem prometi uma opinião. E Asto, sim, posso dizê-lo: merece mesmo o Óscar”, começa por referir a carta de Riccardo Saponara, médio de 29 anos.
Depois de referir que tem “saudades do ombro” do amigo, que via como “um irmão mais velho”, o jogador italiano recorda que Astori lhe pediu o número de telemóvel assim que integrou o plantel, para o incluir. E parte depois para a memória mais complicada: a do momento em que soube que algo se tinha passado com o capitão de equipa através do roupeiro. “A voz dele estava quebrada, não percebi o que tinha dito. Aproximei-me para tentar ouvir. Se calhar já tinha ouvido mas o meu cérebro recusou-se a aceitar. Quase como um impulso que leva a uma recusa clara. ‘O Davide está morto!’. O vazio, a descarga elétrica, paralisa-te. Não o conseguia ouvir bem. Ou se calhar não queria. Pedi que repetisse e ele repetiu. Virei-me para o Vincent [Laurini] com os olhos abertos. Como é que podia dizer-lhe algo assim? Mas nem tive tempo, porque alguém bateu à porta do nosso quarto. Abri a porta com a força de alguém que se perdeu, alguém que já não está no controlo do corpo”, conta Saponara, revelando depois que era Stefano Pioli, então treinador da Fiorentina e atual técnico do AC Milan, que estava do outro lado da porta.
“Era o treinador. O Stefano Pioli apareceu em lágrimas. ‘Já não há Davide’. E continuou a chorar. Abraçou-me levemente, um gesto que senti ser desesperado. Foi nessa altura que passei para o corredor. Alguns dos meus colegas estavam no chão, petrificados. Outros recusavam a aceitar que tinha mesmo acontecido, que tinha acontecido ao Davide. Conseguia ouvir punhos a bater nas paredes do hotel. Gritos de raiva e dor. ‘Como é que é possível!!!’. Tentavam perceber como é que a vida poderia ter sido tão infame. Mas não existia resposta e continua sem existir. Lembro-me claramente de ouvir os gritos do Chiesa [agora na Juventus], que tinha acordado com a notícia. Eram gritos de desespero, descontrolados. Estava a partir tudo o que estava no quarto. Fui ao quarto do Davide. Vi os pés dele mas não tive coragem para entrar”, escreveu o agora jogador da Spezia, que leva dois golos em seis partidas esta temporada.
A carta descreve ainda a forma como a equipa lidou com a ausência do capitão nas partidas seguintes e até ao final da temporada e Riccardo Saponara termina com a certeza de que o amigo estaria orgulhoso do homem que tem sido nos últimos anos. Antes, porém, lembra um dos primeiros momentos que partilhou com Astori, uma boleia para um jantar de equipa, onde garante que foi “conquistado em 20 minutos”.
“‘Eu vou buscar-te, vamos juntos’. Lembras-te de quando fomos no teu Smart para o jantar de equipa? Foi um dos primeiros momentos que partilhamos juntos fora do contexto do futebol. Naqueles 20 minutos aprimorámos a nossa amizade. Falámos sobre valores, projetos, o futuro. Selámos o laço humano que nos unia. Um pacto profundo. Deixaste-me com uma maturidade superior, a maturidade com que encaro o futebol hoje em dia. Antes, jogava com ansiedade: se ganhava, vivia bem; se perdia, a minha semana era uma m****. Não. Graças a ti, entendo que o futebol é uma parte da vida e que é precisamente o balanço que encontramos fora de campo que nos deixa enfrentar a nossa profissão com maior positivismo. Mostraste-me que podemos ser um jogador de futebol mas também um designer de interiores, um crítico de cinema e um amante do tema mais impensável. A vida merece ser vivida com serenidade, aconteça o que acontecer. E é isso que quero passar aos outros”, termina o italiano.