Se pode haver discussão sobre a pedra angular, não haverá com certeza quanto à parede mestra. Na compita pelo registo da patente poderia Ivan Goll ir à liça, por exemplo, mas na transformação das pedras estilhaçadas num louco edifício de contornos variáveis, o grande trabalho é certamente de André Breton (18 de fevereiro de 1896 — 28 de setembro de 1966). O surrealismo tal como o conhecemos vem dos seus manifestos, das suas experiências de escrita automática e dos relatos autobiográficos tão crus, que espantarão decerto quem do surrealismo só tem o entendimento mais escolar.

A face mais visível do surrealismo é a mais espalhafatosa, aquela que se converteu no exibicionismo formal de Dalí, nos cadavres exquis ou na sucessão de imagens sem freio da razão; no entanto, este é apenas um epígono, e nem sequer o mais importante, do surrealismo. A verdade é que, para o absurdo, já havia o Dada, de que Breton lobrigara rapidamente os limites impostos por um cinismo a todo o custo, para relevar o sonho havia, embora sem grande expressão artística, a psicanálise, e a escrita automática facilmente se converteria, como explicava Aragon, num mero encadeamento de imagens sem propósito.

A verdade é que, embora os Manifestos do Surrealismo mostrem as diferenças no pensamento de Breton ao longo dos anos, alguns dos aspetos principais mantêm-se desde a fundação da revista Littérature, com Soupault e Aragon.

Os primeiros anos do surrealismo mostram ainda um entusiasmo com o automatismo que irá esmorecendo; mas mesmo este entusiasmo tem sempre um propósito claro. A ideia de que há uma parte de nós próprios que nos está vedada, de que a razão afunila o nosso pensamento, de que o temos condicionado por uma série de lugares comuns linguísticos que nos limitam. A ideia de que o surrealismo é feito para transformar o mundo, num paralelo consciente com o marxismo, será sempre importante, apesar de todos os engulhos políticos que causará, para Breton; mas mais do que a questão do sonho como solução para esta transformação e como prova de que há mais em nós do que aquilo de que nos apercebemos, mais do que a solução, interessa o problema.

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70 anos depois ainda não sabemos o que é o Surrealismo

A tradição de Breton é a de Baudelaire e Mallarmé, a tradição da literatura que se vê sufocada pelas suas próprias formas. O verso livre de Baudelaire, a obsessão de Mallarmé com o som, a escrita automática de Breton e depois de Éluard e de todos aqueles que se juntaram a Breton é uma tentativa de espantar a artificialidade com a vida, filtrada pelo papel e pelo pensamento, nos aparece. Esta ideia é importante, não apenas porque a forma nos impede de gravar a vida tal como ela é, mas também porque esta forma influencia o nosso próprio modo de olharmos para ela. Não é apenas uma questão de deficiência entre aquilo que nos aparece e aquilo que expressamos; o que está em causa é o problema de aquilo que nos aparece ser determinado pela nossa gramática de expressão, que falsifica a nossa perceção da vida. Ora, esta perceção defeituosa manifesta-se, nas diferentes tradições literárias, de várias formas. Se em Freud a repressão da verdadeira vida é o que causa o mal.estar da civilização, se em Baudelaire é a causa do tédio, em Breton este problema é representado pela mediocridade.

É este forro do surrealismo que o torna mais interessante. A exuberância associativa esgota-se depressa, mas a vida como aparece em Nadja, a identificação do problema de que o sonho pretende ser a solução, é o mais interessante porque é o mais verdadeiro. Pode haver muitos modos de tentar escapar do modo habitual de viver, muitas filosofias que, como escapam ao modo natural de pensar, se apresentam como representantes da verdadeira vida; mas aquilo que nos aparece, no seu modo afunilado e medíocre, nos seus tetos baixos em que tudo já nos parece pensado, visto e mastigado, isso está sempre mais próximo de nós.

Ora, a mediocridade do comum, o sentido da vida que nos arrasta, esse é o legado mais feroz do surrealismo e aquele que mais asfixia. Que o estilo literário que nos deu os sonhos mais imprevisíveis também nos tenha dado a realidade mais concreta, mais crua e mais baixa, não o mundo devasso, satânico e imoral de Baudelaire, mas o quadro apertado e inescapável da vida de empregadas e funcionários sem curso de empresas contabilísticas. Este mundo, que em Portugal ninguém conseguiu emular tão bem, à maneira de Breton, como Luiz Pacheco, seja nos fragmentos de vida mais escabrosos, como em O libertino passeia por Braga, seja no caso em que esta asfixia, pela quantidade de gente no mesmo espaço, é mais evidente (falamos de Comunidade), este mundo, dizíamos, é aquilo que de mais aterrorizador o surrealismo nos dá.

A inventividade onírica é engraçada, mas também é limitada, a falta de um propósito nas associações torna-as mais interessantes, enquanto exercício terapêutico, para quem escreve do que para quem lê, e o recurso ao sonho é engenhoso, mas parece navegar só na superfície daquilo que a psicanálise alcançou; no entanto, todos estes recursos respondem a tentativas de escapar a um ar rarefeito que Breton representou como ninguém. As suas tentativas de lhe escapar podem parecer um pouco superficiais, mas até isso contribui para a negritude do quadro. Isto é, ninguém acredita no mundo transformado pelo surrealismo, os cadavres exquis não são a solução para a vida de ninguém e as grandes formas da pintura, na sua junção monstruosa de elementos, parecem o consolo de derrotados, contentes por picarem um capitão com uma agulha quando acabaram de ser varridos por um exército mortal; mas isso só torna mais cruel a vida que se vê em Radja, aquela de que Breton se quer libertar a todo o custo, mesmo que se perca em sonhos falhados de transformação do mundo.