O Ministério Público abriu uma investigação aos contratos públicos entre autarcas do PS, que o Observador noticiou no final de fevereiro e que pode resultar em perda de mandato. Em causa está a contratação, por parte da Câmara Municipal da Lousã (gerida pelo PS), de serviços de construção civil a uma empresa detida maioritariamente pela presidente de uma junta de freguesia do mesmo município (e do mesmo partido). “Confirma-se a existência de um inquérito relacionado com a matéria”, diz ao Observador a Procuradoria-geral da República (PGR).

O caso remonta ao início do mês de fevereiro deste ano. Num contrato de cerca de 24 mil euros, a Câmara Municipal da Lousã recorreu, por ajuste direto, aos serviços da Sétimo Sentido, Lda. para a realização de obras de “requalificação, beneficiação e amplificação do pavilhão desportivo n.º 2” do município. A empresa é detida, em 75% por Sandra Fernandes que, além da participação maioritária é também presidente da Junta de Freguesia de Gândaras, no concelho de Lousã.

Autarca do PS contrata presidente de Junta de Freguesia socialista

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Problema: cerca de um ano antes, o Supremo Tribunal Administrativo já tinha deixado claro que a lei impede precisamente este tipo de situações. Na prática, uma autarquia não pode estabelecer contratos de prestação de serviços com empresas que sejam participadas por autarcas a exercer funções no mesmo município.

Perante os dados da notícia que o Observador trouxe a público, e num momento em que a oposição social-democrata já formalizou uma queixa junto do Ministério Público, a PGR confirma ter aberto uma investigação ao caso. “Confirma-se a existência de um inquérito relacionado com a matéria” e “o mesmo é dirigido pelo Ministério Público do Departamento de Investigação e Ação Penal Regional de Coimbra”, refere a resposta da PGR às questões colocadas pelo Observador, sem adiantar mais detalhes.

Um mês de contrato, zero intervenções

Nos primeiros esclarecimentos que remeteu ao Observador sobre este caso, o presidente da CML, Luís Antunes, disse que, verificando-se a incompatibilidade, o contrato entre a autarquia e a empresa de Sandra Fernandes seria anulado. O autarca socialista também explicou que a contratação — feita fora dos limites previstos na lei — só aconteceu porque todo o processo de seleção e preparação do contrato com a Sétimo Sentido, Lda. esteve a cargo dos “serviços técnicos” da câmara municipal.

Nunca foram suscitadas “quaisquer questões subjetivas face aos titulares da sociedade a quem se propôs a adjudicação” e, por isso, Luís Antunes assinou de cruz por cima da rubrica de Sandra Fernandes. Mas aquela não foi a primeira relação contratual entre as duas entidades — a pública e a privada.

No documento que o Observador consultou está prevista a duração de 30 dias para a conclusão da obra. Mas, no final de fevereiro, quando a autarquia foi confrontada com o caso — no mesmo momento em que pela primeira surgiram dúvidas sobre a legalidade do ato —, a Câmara Municipal da Lousã disse que o contrato seria anulado. O Observador quis saber, mais tarde, se já teria sido realizado algum tipo de intervenção por parte da empresa de Sandra Fernandes, uma vez que se aproximava o fim do prazo do contrato. Mas, diz a autarquia, apesar desse calendário já apertado, “não tinha existido qualquer obra referente a este contrato” e, por essa razão, “não há lugar a qualquer ressarcimento à empresa”, garante a autarquia.

Cinco anos, três contratos, uma autarquia

De acordo com as informações disponíveis no portal Base (que reúne os contratos firmados por entidades públicas), nos últimos cinco anos, a Câmara Municipal da Lousã recorreu em, pelo menos, três momentos distintos à Sétimo Sentido, Lda: aconteceu pela primeira vez em 2016 (num contrato de 14.728 euros), outra vez em 2017 (numa intervenção de 11.310,55 euros) e, novamente, em fevereiro deste ano (com a soma mais avultada de todas, num total de 22.365 euros).

No primeiro contrato, a empresa foi responsável pela disponibilização de “vãos de alumínio”. No segundo contrato, estavam em causa trabalhos de conclusão numa obra de requalificação da Escola Básica n.º 2 da Lousã. O terceiro e último contrato dizia respeito aos trabalhos no pavilhão desportivo do município. Apenas o primeiro e o último contrato estão disponíveis no portal Base mas, em todos os casos, o modelo de escolha foi sempre o mesmo: “Ajuste direto regime geral.”

Além disso, numa busca no portal base por relações da Sétimo Sentido com entidades públicas, os resultados não são vastos. Na verdade, limitam-se àqueles três contratos com a Câmara Municipal da Lousã e aos respetivos 48.500 euros.

Por outro lado, se a assinatura que consta do último contrato pertence a Sandra Fernandes, em representação da empresa, no primeiro contrato, de 2016, é o seu sócio, José Miguel Martins Vaz, quem assina em nome da Sétimo Sentido, Lda. Mas, ao longo de todo este processo, Sandra Fernandes foi sempre a sócia-maioritária da empresa. Há, no entanto, uma diferença face ao último contrato: é que só em 2017 a empresária foi eleita para a presidência da Junta de Freguesia de Gândaras. No mandato anterior (2013-2017), já estava na autarquia, mas como vice-presidente.

De qualquer forma, a lei que regula o exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos só entrou em vigor em 2019. Ao Observador, o advogado Paulo Otero, especialista em Direito Administrativo, dizia que “à luz do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo [de março do ano passado], poderão ser responsabilizados não apenas o destinatário do contrato como também o seu autor”. A partir deste caso, “decorrerá um processo do Ministério Público que poderá resultar em perda de mandato”, antecipava há cerca de duas semanas.