Quando o telefone da enfermeira Paula Atochera tocou no início da noite de terça-feira, dificilmente imaginava o cenário que iria encontrar. Uma embarcação com mais de 50 migrantes oriundos do Mali estava a chegar ao cais de Arguineguín, na ilha da Gran Canária. Após uma viagem dura, muitos vinham feridos, desidratados e alguns em hipotermia. A profissional de saúde não ficou indiferente à chamada e dirigiu-se ao local. Quando lá chegou, foi-lhe entregue nos braços, sob o olhar preocupado da mãe à distância, uma bebé de 24 meses em estado crítico. Nabody estava em paragem cardiorrespiratória.
Paula Atochera estava acompanhada do amigo e enfermeiro Juan Miguel Vela. Trabalham há seis meses juntos na Cruz Vermelha Espanhola, no hospital de campanha montado perto do cais de Arguineguín, que trata de migrantes que chegam em estado crítico à ilha da Gran Canária. Mas o caso de Nabody ficará para sempre marcado na sua memória: “Nunca tinha vivenciado uma situação tão crítica com uma criança tão pequena de apenas dois anos”.
Foi necessário reanimá-la. Juan Miguel Vela lembra que nesses momentos “se foi abaixo”. Mas “respirou fundo” e deitou Nabody no chão, pôs as luvas, cortou-lhe a roupa e começou a reanimá-la. A bebé não reagia. Os dois enfermeiros entreolharam-se. “Vou continuar”, disse Juan Miguel. Foram dois a três minutos de pânico. Mas a bebé finalmente respirou. “Quando vi a criança a respirar, respirei com ela, foi um milagre”, recorda Paula Atochera.
Apesar do desfecho, a situação foi “complicada” e bastante tensa. Caso Nabody não respirasse, era necessário deixá-la no chão. A morrer sozinha. “Eu só pensava por favor respira o quanto antes. Sabíamos que o seguinte passo era deixá-la e ajudar as outras pessoas que também estavam em mau estado”, recorda Juan Miguel Vela. A enfermeira também confessou que, quando pensa no que aconteceu, fica imediatamente “com pele de galinha”.
É um caso que está a chamar a atenção para os problemas dos migrantes que atravessam o Atlântico desde a costa ocidental africana para chegar às Ilhas Canárias. A viagem não é fácil, sendo que as intempéries frequentes e as más condições das embarcações ainda a tornam mais difícil — os migrantes chegam mesmo a beber água do mar para saciar a sede. Desde o início deste ano e até 15 de março, o ministério de Interior espanhol, de acordo com o El País, contabilizou 2.580 chegadas, o que até é um número inferior àquele registado em outros anos. No entanto, os barcos têm chegado com cada vez mais bebés, crianças e grávidas, que dificilmente suportam travessias deste tipo.
A embarcação em que Nabody foi transportada trazia mais 51 pessoas, entre os quais oito crianças — sendo que dois irmãos de 13 e cinco anos chegaram mesmo a viajar sozinhos. Após terem sido retirados do barco, Juan Miguel Vela lembra que se viu diante de um “drama”: “Vi muita gente mal, muitas crianças, muitas mulheres e muitos homens. É uma situação crítica em que todos pedem ajuda”, acrescentando ainda que, após um breve diagnóstico, havia quadros severos de hipotermia, desidratação e feridas enormes provocadas pela mistura do combustível com a água salgada. E, no meio deste cenário, o choro constante até era um bom sinal. Pelo menos, de acordo com o enfermeiro, os migrantes continuavam vivos.
Dos 52 migrantes que chegaram ao cais de Arguineguín, 26 ainda estão, esta sexta-feira, hospitalizados, seis dos quais são crianças, informa o diário regional La Provincia. Nabody é uma delas e continua em estado crítico. Mas não é a única: também uma outra criança apresenta um quadro clínico que levanta muitas preocupações, bem como dois adultos.
Aqueles que não estão no hospital foram levados para o centro de detenção de Barranco Seco. Fontes policiais ouvidas pelo El País indicam que os migrantes “quase não podiam andar, doía-lhes tudo e estavam feridos”, sendo que até tiveram de ser ajudados pela polícia a subir para o autocarro que os levou do cais.
“Não somos notícia, apenas testemunhas”
A história desta embarcação e de Nabody não é a única. Juan Miguel Vela e Paula Atochera consideram que o que lhes aconteceu não é por si uma “notícia”, sendo que “apenas são testemunhas” de um fenómeno que ainda se repete “no século XXI”: “Ainda continua a haver pessoas que têm de fugir assim dos seus países”. Os enfermeiros também lamentam que seja preciso “chegar a um situação tão extrema para nos darmos conta de uma realidade que está a acontecer todos os dias”. “Temos sentimentos de raiva e injustiça”, desabafaram.
A diferença deste caso foi que havia dois fotojornalistas no cais de Arguineguín, que captaram as imagens do salvamento de Nabody (e que até chegaram a chamar a ambulância para socorrer a bebé). “As imagens da reanimação tiveram muita visibilidade, mas é só uma das muitas intervenções que fazemos”, diz Paula Atochera, que acrescenta que esta impacta mais porque “é uma bebé de apenas dois anos”, mas que “muitas das pessoas que chegam ao cais chegam muito mal — algumas até já mortas”.
E a enfermeira dá um exemplo. Dos 47 migrantes (onze dos quais crianças) resgatados de uma embarcação na madrugada desta quinta-feira, um deles acabou por morrer. A sua mulher, grávida, acompanhava-o na viagem.
Covid-19 torna Ilhas Canárias na nova porta de entrada na Europa
Os migrantes saem de territórios como a Costa do Marfim, o Mali (de onde é a pequena Nabody), a Mauritânia, a Nigéria e o Senegal à procura de melhores condições de vida na Europa. Antes da pandemia de Covid-19, as rotas migratórias eram realizadas via terrestre primeiramente do sul do continente africano para países banhados pelo Mar Mediterrâneo, como Marrocos, a Argélia ou a a Tunísia. Daí os migrantes apanhavam um barco em direção à Europa. Com a pandemia de Covid-19, que originou o encerramento de fronteiras terrestres, a porta de entrada para o continente europeu é feita agora por via marítima.
Para isto, também contribuiu a existência de acordos que vários países europeus, como Espanha, assinaram com países do Norte de África. Bram Frouws, do instituto Mixed Migration Center, que se dedica ao estudo dos movimentos migratórios, relata à Deutsche Welle (DW) que tal aconteceu entre as autoridades espanholas e marroquinas: “Houve um aumento de migração [da costa norte] de Marrocos para Espanha e houve um pacote de 15 milhões de euros para apoiar Marrocos como parte da chamada cooperação de migração” — que determinava a expulsão de migrantes que estavam junto à costa.
E a pandemia não só afetou a rota migratória, como também aumentou as dificuldades económicas em África. Maioria dos países no continente entrou em recessão em 2020 e a população viu as suas condições de vida piorarem. “O impacto socioeconómico da pandemia está a aumentar o desejo e a necessidade de as pessoas migrarem”, explica ainda Bram Frouws à DW.