A polémica fez o mundo (e grande parte do país) descobrir a garrida camisola poveira, farda de pescadores com, pelo menos, dois séculos de história, mas também vestimenta festiva cuja exuberância levantou dúvidas sobre a sua autenticidade em 1936. Felizmente, o etnólogo António Santos Graça estava lá para restabelecer a honra deste traje tradicional português.

“Esta camisola tem uma longa história”, avisa Deolinda Carneiro, diretora do Museu Municipal da Póvoa de Varzim e historiadora. Por estes dias, ocupa-se da investigação que desembocará no próximo livro sobre esta peça tradicional. Nem tudo o que tem sido assumido sobre a evolução das camisolas ao longo das décadas é consensual — afinal, elas podem ser anteriores ao século XIX, nem sempre foram bordadas com os mesmos motivos e talvez possam mesmo ter passado de moda, mas apenas por breves instantes.

Com todas as atenções voltadas para esta peça de roupa, à semelhança do que aconteceu em meados do século passado, a poveira pode muito bem voltar a internacionalizar-se. À Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, por exemplo, têm chegado encomendas de vários pontos da Europa e da América do Norte. “Temos de ver se é preciso aumentar a produção”, assinala o presidente, a postos para arregimentar uma nova leva de tricotadeiros. Enquanto o imbróglio entre o município e Tory Burch não se resolve, agora com o Ministério da Cultura também em cena, recordamos a história da camisola poveira.

Da serra para a praia: a história das camisolas dos pescadores

A origem é incerta no tempo, embora as primeiras e mais expressivas representações da camisola poveira datem do século XIX. Um traje festivo, mas também de trabalho, como sublinha Deolinda Carneiro, que se tem dedicado a estudar esta peça tradicional portuguesa.

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“Existe a hipótese de já se usarem camisolas claras antes. Temos ex-votos anteriores ao século XIX onde se vêem pescadores de [barrete] catalão vermelho e camisola esbranquiçada. A minha tese é de que a camisola surge inspirada na camisa básica dos séculos XVI e XVII. A estrutura é muito simples — não tem a cava arredondada, é feita a direito. Concluo que seja uma transposição da camisa antiga para malha“, comenta em conversa com o Observador.

© Imagem cedida pelo Museu Municipal da Póvoa de Varzim

A historiadora refere a dificuldade de reconstituir a evolução deste traje regional. Fala num processo baseado em análise iconográfica, num “trabalho de arqueólogo, mais do que de historiador”. A mesma incerteza paira, por isso, sobre a forma como se tornou, simultaneamente, numa peça de trabalho e de romaria. “Tanto vemos o pescador a trabalhar e a envergar a camisola, como vemos o Tio Peroqueiro, uma personagem muito interessante da altura [início do século XX], sempre com a camisola poveira vestida e como sendo uma peça de luxo. Não havia muita roupa, então as pessoas usavam-na em festas e romarias quando era nova, mas acabavam por fazer dela uma peça para trabalhar“, explica.

Para os pescadores da região, tornou-se uma proteção contra o frio cortante do mar, tricotada em lã vinda da Serra da Estrela — fio grosso em tom branco cru, que dada a preferência desta população costeira chegou a ser conhecido como “lã poveira”. A cor era adicionada mais tarde (preto e vermelho, sobretudo), através de bordados em ponto de cruz.

Os motivos eram diversos e foram mudando ao longo do tempo. Elementos marítimos como remos, embarcações, peixes, crustáceos e as próprias armas da coroa portuguesa vão ganhando expressão com o avançar do século XX, ao passo que as siglas poveiras, forma de escrita rudimentar que poderá ter sido deixada pelos vikings há cerca de mil anos e foi sendo passada de geração em geração, são apontadas por Deolinda Carneiro como “recentes”, posteriores ao hábito de bordar os nomes nas camisolas.

Polémicas, tragédias e modas: como evoluiu a camisola poveira?

“Sabemos que os banheiros usavam as camisolas sempre com o nome. Temos a certeza disso no século XX, mas antes disso não sabemos”, assinala. Faz referência a peças dos anos 1880, algumas já com nomes bordados. No entanto, não é claro se se tratam de banheiros ou de pescadores. Bem mais tarde, no início dos anos 60, os primeiros são obrigados pela câmara a usar as poveiras durante o serviço. A historiadora diz que o hábito não pegou — a espessura da peça não condizia com as horas de sol.

© Imagem cedida pelo Museu Municipal da Póvoa de Varzim

Outro dos momentos que permanece encoberto pela falta de registos é a viragem do século, altura em que a garrida camisola quase desaparece no quotidiano poveiro. A teoria de que os naufrágios de 27 de fevereiro de 1892 e o consequente luto da população enegreceu a paisagem continua a ser uma teoria consensual, mas não a única. “Sabemos que, na altura, as pessoas tingiram a roupa de preto, mas acredito que também pode ter sido uma mudança no gosto. Na imagens da época, vêem-se os homens com camisas de fazenda escura, mas também trabalhadas. É também quando deixam de usar o catalão e passam a usar a boina basca”, completa a diretora do Museu Municipal da Póvoa de Varzim.

Décadas depois, a cor estaria de volta. Em 1936, é criado o Rancho Folclórico Poveiro e logo aí a camisola, usada pelos homens nas danças, é motivo de polémica. “Havia gente que duvidava de que as camisolas fossem autênticas, achavam-nas muito coloridas e inusitadas para serem usadas por homens”, recorda. Para a historiadora, as questões terão sido levantadas no âmbito da rivalidade entre ranchos nortenhos, na sequência do sucesso imediato do grupo recém-criado. O questionamento público levou António Santos Graça, etnólogo da terra, a escrever um artigo para o jornal com o título “A justificação do traje poveiro”, de forma a legitimar o seu uso por parte dos homens do rancho.

© Imagem cedida pelo Museu Municipal da Póvoa de Varzim

O século XX traz também a internacionalização do traje regional, momento alavancado pelo Estado Novo. “Ala-Arriba”, o filme de Leitão de Barros, foi o início de uma promoção sem precedentes para a camisola usada pelos pescadores, ainda em 1942. Nessa mesma década, a peça viria a ser vendida por todo o país e nos anos 50 era já exportada para Londres e Nova Iorque. No final dos anos 60, Grace Kelly, princesa do Mónaco, surge nas páginas de uma revista com uma vestida.

“Inicialmente, é uma peça masculina, mas isso muda à medida que vai sendo divulgada com a moda folk”, anota Deolinda Carneiro. É a época das grandes inovações — uma versão com gola fez dela um sucesso nos países nórdicos, apareceram exemplares em materiais sintéticos e em algodão, mais frescos, e até de manga curta. “Na praia, os fotógrafos à la minute começaram a vestir a camisola para serem vistos mais facilmente, mas optaram pelo azul escuro para não se sujar com tanta facilidade”, continua.

Camisola poveira: um futuro que “se escreve direito por linhas tortas”

As palavras são de Aires Pereira, presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, que reconhece no reverso da polémica uma oportunidade para promover a camisola poveira no mundo. “Tivemos uma divulgação à escala global. Foi uma utilização abusiva, mas não podemos negar que a projeção que a camisola e a Póvoa de Varzim conseguiram ter com esta polémica vai além do que podíamos imaginar”, admite o autarca em conversa com o Observador.

A apropriação feita pela marca norte-americana ganhou uma dimensão global com a ajuda de plataformas como a Diet Prada, que conta com mais de 2,6 milhões de seguidores. O certo é que nunca a camisola poveira tinha sido exibida perante uma tão extensa audiência e na Póvoa de Varzim os efeitos da exposição já se fazem sentir.

A camisola da coleção de Tory Burch deixou de estar disponível na loja online durante a tarde de sexta-feira

“Estamos assoberbados com pedidos de todos os cantos do mundo, de pessoas que querem adquirir a camisola original”, avança o autarca. A produção continua a ser totalmente manual e são precisas 50 horas de trabalho para concluir uma única camisola. As peças são depois vendidas pelo Posto de Turismo da cidade, encerrado no cumprimento do atual estado de emergência. Custam 80 euros, dez vezes menos do que o exemplar de Tory Burch.

“Neste momento, não está a ser fácil satisfazer todos os pedidos. Temos de ver se é preciso aumentar a produção. Há pessoas que têm feito cursos e podem ser chamadas para produzir também”, continua Aires Pereira, referindo-se às formações promovidas pela União das Freguesias da Póvoa de Varzim, Beiriz e Argivai e pelo IEFP. A corrida às camisolas poveiras — com encomendas a chegar dos Estados Unidos e do Canadá, mas também da Escandinávia — é real, mas pode vir a ser só uma parte da atenção internacional que esta cidade portuguesa e o seu património estão prestes a receber.

Em cima da mesa está um protocolo, ainda por fechar, que prevê financiamento e apoio por parte da marca a ações de formação, com o objetivo de preservar o legado da cultura poveira. Nas palavras do presidente, o acordo “está em análise do lado de lá” e passará sempre pelo “envolvimento da marca no artesanato local”. Novos lançamentos de Tory Burch, desta vez desenvolvidos em solo português? Talvez, mas o autarca não adianta detalhes sobre o documento, que acredita poder ser assinado nos próximos dias.

Marca norte-americana vende camisola poveira (como sendo de design próprio) por 695 euros

Mas o futuro da camisola poveira passa inevitavelmente pela certificação. O processo decorre há mais de seis meses no Instituto Nacional da Propriedade Industrial, a quem cabe emitir os pareceres necessários à sua aprovação. O autarca diz estar para breve, mas não se alonga em estimativas. Importa, sobretudo, salvaguardar esta peça do património poveiro.

“Fica protegida daquilo que possam ser imitações ou de produtos com o mesmo nome que não estejam de acordo com o padrão disponível. Obviamente, passam a ter de pedir autorização para utilizar. Quer dizer, é sempre necessário pedir porque é património poveiro e está registado como tal, daí que a marca tenha vindo desculpar-se. Mas estamos a trabalhar para que haja uma marca registada”, remata.