Um avião dos serviços humanitários das Nações Unidas aterra no aeroporto de Pemba, norte de Moçambique, e do interior saem crianças e adultos, regressados de Palma, palco de um ataque na semana passada. Um bebé de um ano vem no interior, juntamente com a mãe e outros familiares, tem uma bala alojada na perna, foi alvejado enquanto a mãe o levava ao colo da fuga de Palma, na quarta-feira.
Calmo e nutrido, tem o ferimento tratado, mas vai voltar a ser observado no banco de socorro do Hospital de Pemba para que de uma vez por todas se extraia a bala. Um dos familiares, que prefere falar no anonimato, conta que a fuga de Palma foi feita de súbito, pelo mato em direção à península de Afungi, para junto do recinto do projeto de gás do norte de Moçambique.
Chegaram à zona com outros deslocados na quinta-feira, após um dia de correria e esconderijo. Em Afungi continuam milhares de pessoas que têm medo de voltar para a vila, referem os familiares, sem quantificar. Mas no que consideram ser chão seguro “não há comida”. Pouco depois o avião da ONU volta a descolar e faz o trajeto de volta à península de Afungi, 200 quilómetros a norte.
Alguns feridos e outros casos que inspiram mais cuidados têm chegado a Pemba por avião, da ONU e de empresas privadas que operam no percurso, que ao mesmo tempo levam assistência para o local.
Navios com alguns milhares de pessoas têm também estado a chegar à capital provincial: depois de 1.300 – sobretudo trabalhadores ligados aos projetos de gás – terem chegado no domingo, um outro navio atracou no porto, de onde têm estado a sair deslocados a conta gotas.
Não há números oficiais sobre a quantidade de pessoas nesses barcos, mas estima-se que possam superar as mil. Noutras matas em redor de Palma a fuga continua, como testemunhou à Lusa um outro grupo 50 quilómetros a norte, na fronteira com a Tanzânia no rio Rovuma, onde já estariam cerca de 500 pessoas.
“Aquilo foi um momento difícil, foi um massacre. Na verdade, ninguém gostaria de falar de novo sobre aquilo”, descreve Nelson Matola, habitante de Palma, ao desembarcar em Pemba. “Morreu muita gente“, acrescenta, relatando horas em que correu pela vida até ao hotel Amarula, onde ficou refugiado até à hora de resgate.
As descrições de violência cruel avolumam-se e Abudo Ibraimo, 33 anos, não percebe a guerra que lhe chegou à porta de casa no norte de Moçambique. “Todos os dias estamos a perder os nossos familiares“, disse à Lusa no porto de Pemba, enquanto espera por um sinal da irmã que estava em Palma no dia do ataque de grupos armados àquela vila, junto ao principal projeto de gás no país.
“Mesmo um animal irracional consegue construir um ninho para as suas crias, mas o que está a acontecer connosco não é isso”, é uma “matança” de uma população tratada como “animais”, em vez de “pessoas”. “Não estamos a conseguir perceber qual o objetivo disto e onde vai terminar“, destacou. Por isso pede “ao presidente”, numa alusão ao chefe de Estado moçambicano, Filipe Nyusi, para “duplicar esforços” no sentido de proteger quem vive em Cabo Delgado e pôr termo à violência.
Inok Gomacha é um zimbabueano de 42 anos cheio de angústia porque o filho de 20 anos trabalha em Palma e “está mal“. Não por estar ferido, mas porque “é muito novo para ver este tipo de coisas“, uma violência armada cruel que deixou um número incerto de pessoas abatidas pelas ruas de Palma. Ao contrário de muitos, Inok já conseguiu falar com o filho, sabe que ele conseguiu ser resgatado, mas deixa uma mensagem: nos países africanos tem de deixar de haver violência.
A vila sede de distrito que acolhe os projetos de gás do norte de Moçambique foi atacada na quarta-feira por grupos insurgentes que há três anos e meio aterrorizam a região, e o movimento terrorista Estado Islâmico reivindicou o controlo de Palma.
Dezenas de civis, incluindo sete pessoas que tentavam fugir do principal hotel de Palma, no norte de Moçambique, foram mortos pelo grupo armado que atacou a vila na quarta-feira, disse o Ministério da Defesa moçambicano. Numa operação de resgate de expatriados de um hotel em Palma, na sexta-feira, um cidadão português ficou gravemente ferido e foi transferido para Joanesburgo, na vizinha África do Sul, disse à Lusa fonte do governo no domingo.
A violência está a provocar uma crise humanitária com quase 700 mil deslocados e mais de duas mil mortes.