O primeiro-ministro avança mesmo para o Tribunal Constitucional com os apoios sociais que o Parlamento aprovou, contra o PS, e o Presidente da República promulgou, apesar da lei-travão que impede os deputados de aumentarem a despesa ou diminuírem a receita previstas no Orçamento do Estado. O primeiro-ministro mantém que as três leis “violam” a Constituição porque “impõem um aumento da despesa fixada no Orçamento”. “É perigoso que se forme um precedente que abre a porta para o receio expresso pelo Presidente da República de  ‘a prática parlamentar passar a ser de constante desfiguração do Orçamento de Estado’”, afirmou António Costa esta tarde numa declaração ao país.

Depois de alguma hesitação desde que conheceu a decisão do Presidente da República, o primeiro-ministro veio afirmar que a “Constituição é muito clara na repartição de poderes. O Parlamento é soberano na aprovação do Orçamento e o Governo é totalmente responsável pela sua execução. Por isso, uma vez aprovado o Orçamento, a Assembleia não pode, nem aumentar a despesa, nem diminuir a receita, previstas nesse Orçamento”. Passar por cima da norma-travão, inscrita na Constituição, significaria “a incerteza jurídica”, o que “gera insegurança e mina a confiança nas instituições”, afirmou Costa na declaração feita no exterior do Palácio de São Bento.

Aplacando já eventuais tensões com Belém, são várias as citações do Presidente da República que o primeiro-ministro usou na declaração que leu no exterior do Palacete de São Bento. Uma delas foi quando reforçou que esta decisão surge no “exercício normal” das suas “competências, no quadro do princípio da separação e interdependência de poderes consagrado na Constituição, ou seja, como muito bem sintetizou o Senhor Presidente da República: ‘É a Democracia e o Estado de Direito a funcionarem'”.

Para António Costa, “Lei é Lei e a Constituição é a Lei Suprema, que é nosso dever cumprir e fazer cumprir, sejam as medidas populares ou impopulares, estejamos ou não em ano eleitoral, seja ou não o Governo maioritário”, disse acrescentando que “a Constituição é sempre a Constituição”. E sem esquecer de dar como exemplo o que se passou no mandato do seu antecessor em São Bento: “Esta pandemia é o combate mais duro das nossas vidas. Mas, tal como defendi na crise anterior, também esta crise tem de ser enfrentada no escrupuloso cumprimento da Constituição“, disse Costa numa referência indireta às normas orçamentais que foram enviadas para o Constitucional para fiscalizações sucessivas e que acabaram travadas, no período da troika, como aconteceu por exemplo com os cortes nas pensões.

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E dividiu a argumentação a seu favor em quatro pontos, onde nem o seu antecessor em São Bento, Pedro Passos Coelho, foi esquecido:

  1. “Primeiro, o Governo não pode deixar de cumprir uma lei da Assembleia da República enquanto esta vigorar, mesmo que a entenda inconstitucional e só o Tribunal Constitucional pode declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade de uma Lei”;
  2. “Segundo, os cidadãos beneficiários têm o direito de saber com o que podem contar, se com o que Assemebleia da Repúblico aprovou, se com o que o Governo viesse a limitar na sua interpretação”;
  3. “Terceiro, não se alcança forma justa de reconduzir estas leis parlamentares aos limites orçamentais. Como iríamos aplicar esse limite? Dando apoios a uns e não a outros? Dando apenas aos que fossem mais rápidos a pedir, até se esgotar o plafond disponível, e recusando todos os pedidos posteriores? Reduzindo o montante do apoio pago a todos, violando o disposto na lei?;
  4. “Quarto, é perigoso que se forme um precedente que abre a porta para o receio expresso pelo Presidente da República de  “a prática parlamentar passar a ser de constante desfiguração do Orçamento de Estado”.

Isto apesar de assumir que a mensagem do Presidente acaba até por ser favorável ao Governo, como assumiu quando disse que Marcelo “procurou limitar os danos constitucionais destas Leis ao propor uma interpretação que esvazia o seu efeito prático, e até reforça os poderes do Governo, ao entender — e cito — que ‘os diplomas podem ser aplicados, na medida em que respeitem os limites resultantes do Orçamento de Estado vigente'”. Nestes três dias de ponderação, este era um argumento que estava a pesar na decisão do primeiro-ministro, que chamou esta decisão de Marcelo de “muito criativa”.

Sobre as medidas, António Costa fez uma longa listagem do que o Governo já fez para responder à crise desencadeada pela pandemia e, no final, afirmou que “não está por isso em causa o mérito ou demérito das medidas. O que está em causa é a defesa da Constituição e o modo como esta garante a estabilidade do orçamento e estabelece o equilíbrio de poderes entre o Governo e a Assembleia da República”.

Relembrou que “por iniciativa do Governo, já estão – e estarão – em vigor medidas de apoio à família, aos trabalhadores independentes e incentivos aos profissionais de saúde. Todas estas situações têm financiamento garantido no Orçamento do Estado”, disse Costa para tentar esvaziar o impacto que um travão a estas medidas possa implicar nas famílias.  E ainda acrescentou que o reforço que foi feito a meio de março, por iniciativa do Governo, já “é fruto do intenso diálogo e negociação que o Governo promoveu e que permitiu a aprovação pela Assembleia da República do Orçamento de Estado para 2021”. A questão, reforçou na sua mensagem, é que “o que a Constituição não permite é que, agora, o Parlamento possa aumentar a despesa com estes apoios, para além do previsto no Orçamento que o próprio Parlamento aprovou”.

Tal como tinha noticiado a Rádio Renascença na quinta-feira passada, o Governo já tinha pressionado o Presidente neste sentido, mas Marcelo acabou por não ir ao encontro dos desejos de António Costa e deu luz verde aos diplomas que foram aprovados apenas com o voto contra do PS no Parlamento no início de março.